Amigos do Fingidor

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A miragem elaborada – 16

Zemaria Pinto


O homem noturno, a busca da luz


III


Na poética de Alcides Werk, o embate noite X dia tem as mesmas dimensões da luta água X terra. Nesta, a água poderosa e destruidora tem por função essencial a fertilização da terra, proporcionando um renovado ciclo vital. Naquele, a noite com suas sombras, sua negatividade intrínseca, conduz ao dia e à consequente e fácil metáfora da esperança no futuro, mas ainda não está aqui o lugar-comum.

A noite, como a vê o poeta, é – sobretudo – um manto protetor da natureza. Essa positividade é realçada no poema “Pescaria”:

                    O sol se põe

                    O croc-croc de mil pescadas
                    saúda a noite nas profundezas


                    Ergue-se o canto da natureza,
                    aves noturnas pelas beiradas


                    Ágeis morcegos, catando insetos


                    Noite fechada, findou-se o dia.


                    E a clara lua, por trás da mata,
                    inventa sombras nas águas mansas
                    me excita os sonhos de pescador.

A noite cúmplice, aliada do homem – convivência natural e pacífica. No poema “Tracajá”, a positividade de elementos comumente negativos é levada ao extremo na descrição da desova das tracajás. Nuvens de chuva, raios na noite, protegendo a vida:

                    Cúmulos-nimbos
                    no céu noturno
                    detonam raios
                    e cai a chuva
                    banhando a praia,
                    levando rastros,
                    lavando odores.

Mas é na chegada da noite, que se percebem elementos negativos na poética de Alcides Werk. Se a noite em si é prenúncio de um novo dia, o anoitecer encerra a destruição do dia que o antecede. No poema “Jacaré”, após lamentar o desaparecimento do pescador por quase uma semana, o narrador vê, na chegada da noite, o fim da esperança de mais um dia que se vai:

                    E eu, testemunha da ausência,
                    no fim de tarde sombrio
                    lanço perguntas ao rio:
                    por onde Dico andara?

Mas é no conciso “Maguari” que o poeta exprime à perfeição essa angústia:

                    Há, nesses teus longos silêncios
                    de fim de tarde
                    à beira do lago,
                    sob o regresso alegre das araras,
                    um ponderável prenúncio de luto.

Da mesma forma, no poema-desabafo “Aos meus irmãos solitários”, é a imagem da noite chegando que leva o poeta à plena consciência de sua condição:

                    Agora,
                    que a noite desceu irreversivelmente sobre minha alma,
                    e nela fez sua morada permanente


                    pagarei vossa hospitalidade
                    com a presença constante da minha alma
                    na noite dos vossos dias

Está claro que a noite anunciadora da aurora é matéria de sonho.

Acuado pela realidade cotidiana, o símbolo noturno recrudesce, até atingir sua condição mais elementar de negatividade. Essa condição, entretanto, realça o labor poético, a carpintaria ora grave ora apaixonada dos sonetos reunidos em Trilha Dágua sob o subtítulo “Estudos”.