Amigos do Fingidor

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Uma análise do Eu – 1/13

Zemaria Pinto*


Informação biográfica


Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos nasce no Engenho Pau d’Arco, vila do Espírito Santo, na Paraíba, a 20 de abril de 1884, onde passa infância e adolescência.

Em 1900 vai para a Paraíba, a cidade, atualmente João Pessoa, fazer o curso de Humanidades, correspondente, hoje, ao ensino médio. Em 1901 inicia colaboração, que se estenderia até 1907, no jornal O Comércio, da capital paraibana.

Em 1903 entra para o curso da Faculdade de Direito do Recife, mas não participa da vida acadêmica, indo ao Recife somente para prestar os exames de fim de ano. Conclui o curso em 1907, mas não exerce a advocacia, preferindo trabalhar como professor de Literatura no Liceu Paraibano, onde estudara.

Por essa época, a economia baseada na cana-de-açúcar estava em franca decadência. A família é obrigada a transferir-se para a capital, deixando para trás o Engenho falido.

Em 1910, casado, muda-se para o Rio de Janeiro, onde continua trabalhando como professor. Em 1912, com a ajuda financeira de um irmão, publica seu único livro: Eu. A repercussão crítica é quase nula.

Em julho de 1914, é nomeado diretor de uma escola em Leopoldina, em Minas Gerais. Transfere-se para com a família. A 12 de novembro daquele mesmo ano, vitimado por uma pneumonia (e não por tuberculose, como anotam alguns), o poeta morre. Tinha 30 anos de idade.  

A Escola de Recife

Século XIX. Anos 60. O Romantismo dava seus últimos vagidos pela voz tonitruante de Castro Alves (1847-1871). Ainda na primeira metade da década, o poeta baiano, juntamente com Tobias Barreto (1839-1889), ambos estudantes da Faculdade de Direito do Recife, lança a poesia Condoreira, de tom declamatório, forte cunho social e engajada na luta pelo fim da escravidão. Castro Alves muda-se para São Paulo, mas as sementes de uma grande movimentação estavam lançadas e permanecem sob a liderança de Tobias Barreto, que, estudioso das ciências e da filosofia em voga na época, inicia, ao final da década, uma segunda fase da escola de Recife: a da poesia filosófico-científica. Para simplificar, fiquemos apenas com o segundo qualificativo, que é como essa corrente é mais conhecida.

É preciso esclarecer, entretanto, que o que os historiadores chamaram depois de escola de Recife não era exatamente um movimento, mas um acontecimento, ou melhor, uma sucessão de acontecimentos, que, muito tempo depois, a história tratou de juntar como parte de um todo homogêneo.

Voltando à segunda fase da escola do Recife, perguntamo-nos – mas o que era afinal a poesia científica? Se a poesia trabalha essencialmente com a expressão individual, muitas vezes sentimental, como pode ser científica? Acontece, leitor, que o Romantismo, inaugurado, no Brasil, 30 anos antes, esgotara todos os limites. A juventude, inconformista, estava atrás de novas formas de expressão. Da Europa (em particular, da França) vinham muitas novidades. Nas ciências e na filosofia, o Evolucionismo, o Positivismo, o Determinismo. Nas artes, e em especial na literatura, o Realismo, o Naturalismo, o Parnasianismo, o Simbolismo. 

A nova forma de fazer poesia não era gratuita, não nascia da simples vontade de meia dúzia de boêmios metidos a intelectuais querendo fazer algo diferente, chocante. Não. Ela nascia do desejo de sepultar de vez os velhos fantasmas românticos, substituindo-os pela racionalidade das novas idéias, cujos principais suportes eram, resumidamente:

1 – o homem não foi “criado”; ele evoluiu de formas inferiores até chegar ao estágio atual; esse preceito é válido para todas as formas de vida: há uma seleção natural, onde vence sempre o mais forte; na organização social humana, também prevalece a seleção natural (Evolucionismo);

2 – o conhecimento científico é o único conhecimento utilitário, por isso deve ser valorizado com relação ao conhecimento espiritual; os males sociais serão eliminados com o progresso material das nações; a arte deve valorizar o conhecimento científico (Positivismo);

3 – o homem é um produto do meio ambiente em que vive; todos os fatos, físicos ou morais, têm uma causa cientificamente explicável; a raça, o meio e o momento histórico são fatores preponderantes para o comportamento humano (Determinismo).

A poesia científica vinha na esteira do Realismo. Prevaleceu, entretanto, o Parnasianismo, que levou a poesia a uma outra direção Vejamos um exemplo da poesia produzida no Recife, àquela época, a partir de um fragmento de Martins Junior: 

Buscando demonstrar pela transformação
De uma simples monera a gênese do mundo
Orgânico; ensinando o dogma fecundo
Do progresso; afirmando a lei da seleção
E seu correlativo - a luta na existência!
Tentam reconstruir, fiéis à experiência,
O vetusto castelo informe do Direito
Que precisa de ser, sob outra luz, refeito! 

Não entremos no mérito dos versos, que não vem ao caso. Mas estão presentes, num jorro, o Positivismo (dogma fecundo do progresso), o Evolucionismo (a lei da seleção) e o Determinismo (a luta na existência). E ainda de quebra o Monismo (...de uma simples monera), doutrina segundo a qual o conjunto dos fatos, lógicos ou físicos, pode ser reduzido à unidade (a monera), e que era o quarto sustentáculo ideológico da escola de Recife.

Bem, leitor, estamos há uns dez parágrafos sem citar o objeto de nosso estudo ou seu autor. Então, para encerrar a introdução e preparar o “gancho” para o capítulo das influências literárias, informamos que Augusto dos Anjos estudou na Faculdade de Direito do Recife, entre 1903 e 1907. E mais: a chamada poesia científica, a despeito da morte de Tobias Barreto, continua a ser praticada, conforme atesta este ilustrativo poemeto de Uldarico Cavalcanti, Ao verme que primeiro tripudiar sobre o meu cadáver, publicado no Jornal do Recife, no mesmo ano em que o nosso autor começava a freqüentar a Faculdade: 

Podes tudo roer, verme pútrido e imundo!
Esta é a tua missão: devastar a matéria.
Tu primeiro virás, depois virá o segundo
E milhões virão mais tripudiar, no fundo
Da cova onde atirar-me a peste ou a miséria! 

Podes tudo roer! Nada, nada te impeça
Na tua faina! Rói a mortalha, o caixão,
Depois rói-me também: tronco, membros, cabeça
Tudo, enfim, verme o que a tua gula apeteça
Mas não toques, maldito, o pobre coração. 

Se tanto não saciar tua voracidade
Não toque o coração tua boca voraz,
Com o ciúme, as paixões, a tortura e a saudade
Que estão devastando a minha mocidade,
Tu te envenenarás! Tu te envenenarás!


(*) Publicado no livro Análise Literária das Obras do Vestibular 2001, este ensaio é o fundamento da minha dissertação no mestrado em Estudos Literários, pela UFAM, em fase, bem adiantada, de elaboração: A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos.