Amigos do Fingidor

terça-feira, 21 de julho de 2015

Um olhar de ternura



Pedro Lucas Lindoso

Nesta semana vi novamente o filme do Walter Salles – Diários de Motocicleta.  O filme é grandioso. A fotografia é bonita. Os caminhos, as estradas tortuosas, os lagos andinos, a cordilheira.  As tomadas são de uma plasticidade cativante. Quando Che Guevara e seu amigo Alberto chegam ao Peru, o filme cresce e as cenas feitas em Cuzco e Machu Picchu são emblemáticas.
O ápice do filme ocorre quando eles chegam a San Pablo, colônia de hansenianos na Amazônia peruana. Che e seu amigo também médico recusam as luvas que estigmatizam. E assim, quebram regras e tabus impostos pelas freiras que administram a colônia.
Aniversário de Che. Há uma festa.  Ele mira a outra margem do rio onde ficam os hansenianos. E deseja comemorar o seu aniversário com eles. Há um apartheid entre doentes e sãos. Um caudaloso rio amazônico como barreira. Numa atitude suicida, Che se atira naquele imenso rio, fundo, com correntezas, à noite, cheio de perigos. Há gritarias de ambos os lados. Quando finalmente chega à margem onde moram os hansenianos é carregado e socorrido por eles. Via-se nos olhos dos doentes um olhar de ternura, endurecido pelo sofrimento,
O mesmo olhar que vi exatamente em 22 de abril de 2004, há mais de dez anos, na face dos hansenianos da Colônia Antônio Aleixo, aqui em Manaus.
Naquele ano construiu-se um conjunto habitacional que se chama Amine Daou Lindoso. A inauguração contou com a presença do governador do Amazonas, na época, Eduardo Braga, o ex-presidente Lula e demais autoridades. D. Amine estava lá com seus quase 80 anos.
Dona Amine Lindoso foi primeira dama do Amazonas de 1979 a 1982. Ela visitava a colônia semanalmente. Também nunca foi vista de luvas. Providenciou e conseguiu atendimento médico, ambulatorial, escola e distribuiu muito carinho e atenção. O espanto da sociedade manauara era o mesmo das freiras em relação aos dois médicos argentinos visitantes na Colônia de San Pablo.
Terminada a solenidade de inauguração do conjunto com discursos e placas de praxe, as autoridades deixam o local.
E aí eles vieram, vários, cumprimentar dona Amine. Queriam vê-la novamente. Alguns bastante mutilados. Fiquei especialmente tocado com uma senhora de cadeira de rodas, com sinais bastante evidentes de mutilações, porém muito vaidosa, com uma flor no cabelo. Queria repetir versos já ditos outrora a D. Amine. E assim o fez. Eles vieram demonstrar aquele olhar de ternura. O mesmo olhar que Walter Salles captou nos hansenianos de San Pablo.