João Bosco Botelho
No século 4 a.C., na Grécia, a Medicina se apresentava na
estrutura dos saberes que procuravam compreender a natureza visível e a invisível.
A profissão estava sedimentada em sistemas de aprendizado e reprodução que
influenciaram, profundamente, nos vinte séculos seguintes, os caminhos das
práticas médicas no Ocidente.
É possível ter sido depois das guerras médicas (490-479) que
a Medicina grega tenha atravessado esse notável desenvolvimento estrutural. A
partir dessa época, o médico aparece como intermediário na formação social e na
edificação do pensamento coletivo, iniciando a processo de ruptura entre a
forte influência dos imemoriais laços mágicos das ideias e crenças religiosas.
Concomitante, ocorreu maior aderência às propostas
pré-socráticas, especificamente, a dos filósofos jônicos, para a interpretação
da natureza por meio da Tekhne. O médico iniciou outra atuação: atuou na observação
dos sinais da natureza visível.
A Medicina se tornou essencialmente etiológica e aderiu ao
pensamento de Leucipo de Mileto: "Nenhuma coisa se engendra ao acaso, mas
todas (a partir) da razão e por necessidade". Este avanço de dimensões
gigantescas possibilitou estabelecer a ponte que ligaria, definitivamente, o
diagnóstico ao prognóstico.
Os elementos da natureza tornaram-se a medida de todas as
coisas!
Os conceitos normativos alcançaram os significantes da doença
como desvio do natural, do funcional e, em maior amplitude, mudança na physis
do homem em torno de cinco categorias:
– Universalidade-individualidade: todas as coisas têm a sua
physis própria, inclusive o homem com as suas partes, as doenças etc. O novo
conceito também está claro no livro "Sobre os Lugares e o Homem":
"A physis do corpo é o princípio da razão da Medicina".
– Harmonia: na aparência e na dinâmica a physis é harmoniosa.
– Racionalidade: a natureza é racional em si mesma, o logos
no qual o homem se harmoniza está atado ao logos da natureza;
– Divindade: a physis é em si mesma divina.
A influência jônica foi tão grande que toda a literatura
médica dessa época que chegou até nós foi registrada em prosa jônica, apesar de
ter sido escrita em Cós, ilha de população e língua dóricas. Este fato só pode
ser explicado pela aceitação entre os letrados do avanço da cultura e da
ciência jônicas.
A preocupação em estabelecer um elo duradouro entre o binômio
saúde-doença com a natureza circundante está presente na introdução do livro Dos Ventos, Águas e Regiões, escrito no
século 4 a.C.: "Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder
assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e os seus
efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto a sua
essência especificada e quanto as suas mudanças".
Sob esses argumentos, é possível entender que a Medicina
tenha iniciado o afastamento das crenças e ideias religiosas na Grécia do
século 4 a.C.