Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Medicina pré-socrática e a Tekhne


João Bosco Botelho


No século 4 a.C., na Grécia, a Medicina se apresentava na estrutura dos saberes que procuravam compreender a natureza visível e a invisível. A profissão estava sedimentada em sistemas de aprendizado e reprodução que influenciaram, profundamente, nos vinte séculos seguintes, os caminhos das práticas médicas no Ocidente.
É possível ter sido depois das guerras médicas (490-479) que a Medicina grega tenha atravessado esse notável desenvolvimento estrutural. A partir dessa época, o médico aparece como intermediário na formação social e na edificação do pensamento coletivo, iniciando a processo de ruptura entre a forte influência dos imemoriais laços mágicos das ideias e crenças religiosas.
Concomitante, ocorreu maior aderência às propostas pré-socráticas, especificamente, a dos filósofos jônicos, para a interpretação da natureza por meio da Tekhne. O médico iniciou outra atuação: atuou na observação dos sinais da natureza visível.
A Medicina se tornou essencialmente etiológica e aderiu ao pensamento de Leucipo de Mileto: "Nenhuma coisa se engendra ao acaso, mas todas (a partir) da razão e por necessidade". Este avanço de dimensões gigantescas possibilitou estabelecer a ponte que ligaria, definitivamente, o diagnóstico ao prognóstico.
Os elementos da natureza tornaram-se a medida de todas as coisas!
Os conceitos normativos alcançaram os significantes da doença como desvio do natural, do funcional e, em maior amplitude, mudança na physis do homem em torno de cinco categorias:
– Universalidade-individualidade: todas as coisas têm a sua physis própria, inclusive o homem com as suas partes, as doenças etc. O novo conceito também está claro no livro "Sobre os Lugares e o Homem": "A physis do corpo é o princípio da razão da Medicina".
– Harmonia: na aparência e na dinâmica a physis é harmoniosa.
– Racionalidade: a natureza é racional em si mesma, o logos no qual o homem se harmoniza está atado ao logos da natureza;
– Divindade: a physis é em si mesma divina.
A influência jônica foi tão grande que toda a literatura médica dessa época que chegou até nós foi registrada em prosa jônica, apesar de ter sido escrita em Cós, ilha de população e língua dóricas. Este fato só pode ser explicado pela aceitação entre os letrados do avanço da cultura e da ciência jônicas.
A preocupação em estabelecer um elo duradouro entre o binômio saúde-doença com a natureza circundante está presente na introdução do livro Dos Ventos, Águas e Regiões, escrito no século 4 a.C.: "Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto a sua essência especificada e quanto as suas mudanças".
Sob esses argumentos, é possível entender que a Medicina tenha iniciado o afastamento das crenças e ideias religiosas na Grécia do século 4 a.C.