Amigos do Fingidor

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

de boemia, etc.


Texto de L. Ruas, garimpado pelo "catador de papeis" Roberto Mendonça.

L. Ruas


Pra começo de conversa, faço questão de acentuar que sou do número daqueles que não aceitam boêmia com acento circunflexo em cima do “e”. Sei que, segundo os dicionários, não há boemia sem acento circunflexo, mas neste caso me insurjo contra os dicionários, contra a ortofonia, contra a ortografia. Para mim o negócio é boemia mesmo. Mia. Esta é que é a verdadeira boemia.
Outro dia me lembrei que, há tempos atrás, em um de nossos muitos e prolongados bate-papos ocorridos nessas andanças, naquelas nossas andanças de antes da Fundação Cultural, de antes da Secretaria de Educação, quando o tempo não lhe era ainda tão escasso ou ele ainda não precisaria se tornar tão avarento de tempo, no meio das nossas muitas conversas sobre tão muitos assuntos, dessas muitas conversas que acontecem toda vez que dois ou mais amigos se encontram para gastar a noite (já que o dia nos gasta e desgasta...), o poeta Elson Farias e eu, depois de divagarmos sobre o assunto, resolvemos que um dia haveríamos de escrever, não sei bem se um livro ou coisa parecida, sobre a boemia. Mas, pelo que eu vejo, livro mesmo é coisa difícil e, muito mais, sobre boemia. Por isso, resolvi, ao lembrar aquela conversa, transmiti-la, mais ou menos aos que me quiserem ler.
Não será necessário esclarecer que o esquecimento, isto é, a memória, já fez o seu costumeiro trabalho e, com sinceridade, não sei mais exatamente o que foi que eu disse, naquela ocasião, e o que foi que o Elson disse. Diante desta incerteza, deixo aqui um aviso aos meus leitores: as asnices que ocorrerem ficam por minha conta. E as outras asnices, por conta do Elson.
Mas, vamos à boemia.
De início me parece que boemia e poesia são muito parecidas, e não só por causa da rima. Pra mim, poeta e boêmio são irmãos gêmeos. Talvez sejam diferentes apenas em um aspecto: o boêmio é uma espécie de poeta existencial, vivencial. Ele traz para a vida aquele estado de espírito que é peculiar ao poeta. Isto explica porque nem todo boêmio é poeta no sentido estrito (que faz poesia) e nem todo poeta é boêmio, embora este último caso seja muito comum.
Diz um velho (é claro que velho) adágio latino que “poetae nascuntur”, o que em português quer dizer que os poetas já nascem poetas. Não adianta fazer força para ser poeta se se não tiver o dom da poesia. No fim dá em nada, para não dizer que dá em outra coisa mais concreta e viscosa. Naturalmente, há muitos que tiveram sua “fase poética”. Mas, ter “fase poética” não é ser poeta. O poeta é poeta sempre, mesmo quando não cria mais poesia escrita, revelada. Lembremos o caso de Rimbaud. Rimbaud sempre foi um poeta mesmo quando abandonou o ofício da poesia. Aliás, diga-se de passagem, aqui temos um caso excelente de poeta-boêmio: Rimbaud. Pois bem. O boêmio também é assim. Quase todo mundo teve sua “fase boêmia”. Fase que corresponde, mais ou menos, a já referida fase poética. Mas quem não é poeta assim como quem não é boêmio, passada aquela fase, mixa. E fica até com vergonha de ter tentado ser uma coisa ou outra.
A boemia como a poesia é um dom. Quem nasceu para ser boêmio pode virar do avesso que não deixa. Ou deixa. Mas aí é um frustrado.
Além de dom a boemia é também vocação. Há os boêmios frustrados do mesmo modo que há os outros frustrados. Aqueles que vivem uma vida que não cola com as suas aptidões. E que, portanto, não vivem vida nenhuma. Ninguém escolhe a boemia. Ela é que nos escolhe. Nisto está a verdadeira vocação. O vocacionado é aquele que não sabe explicar porque é que é isso ou aquilo. Pergunte, leitor, a um poeta verdadeiro porque ele é poeta. Duvido que você obtenha uma resposta exata, lógica. A vocação nos obriga e nos constrange. Não adianta fugir. Nessa história de vocação é como aquela história do “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Não tem escapatória. E o verdadeiro poeta e o verdadeiro boêmio têm consciência disso, mesmo quando acontece como no caso do Poeta de Baudelaire:

Quando, por um decreto das potências supremas,
O Poeta aparece neste mundo de náuseas,
Sua mãe horrorizada e cheia de blasfêmias
Crispa seus punhos para Deus, que se compadece dela:
... “Maldita seja a noite dos prazeres efêmeros
Na qual concebi a minha expiação!...” etc. etc.

Pois é assim. O verdadeiro boêmio, por cima de paus e pedras, não nega a sua raça... Isto é, sua vocação.
Mas em que consiste o verdadeiro boêmio?
Bem. Devo dizer que não me arriscarei a cair na asnice de definir o poeta ou o boêmio. Diz o Jorge Tufic que o poeta é transparente. A gente não sabe o que é ser poeta. Mas se ninguém sabe o que é o poeta, diz ainda o Tufic, todos sentem o poeta.  Aliás, isso não ocorre só com o poeta. Lembro-me, agora, de um artigo de Roberto Alvim Corrêa sobre o Pe. Clérrissac. Roberto Alvim Corrêa, que, por sinal, publicou um belíssimo trabalho sobre François Mauriac no Jornal do Brasil, dizia que quem se aproximasse do Pe. Clérrissac sentia que estava perto de um santo. Pela simples presença, pela simples aproximação. Isso ocorre com quem possui alguma coisa a mais (que não é aquele mais que a Shell lhe dá). Este é o caso do poeta. É o caso do boêmio. Ninguém pode definir um boêmio, mas todos sentem o boêmio. Como definir o indefinível?
Contudo, se não me arrisco a escorregar nesta asnice (conscientemente eu não escorrego, não) de dar uma definição didática tal como a gente encontra em compêndios sobre arte, do poeta e do boêmio, pra que depois qualquer imbecil saia dizendo por aí que sabe o que é um poeta ou um boêmio, atrevo-me a destacar uma característica que me parece indispensável e essencial a todo boêmio.
Parodiando Euclides da Cunha: o boêmio é, antes de tudo, um rebelde.
Calma. Não se apresse. Não se trata de rebeldia subversiva. Nada disso. O boêmio é rebelde no sentido, talvez, da rebeldia do “homem rebelde” de Albert Camus. Se a palavra, porém, pode parecer digna  de qualquer suspeição, digamos, em vez de rebelde, insatisfeito ou, melhor, chateado. É isso mesmo. O boêmio é um sujeito chateado. Naturalmente a maioria dos indivíduos não é chateada. É chata, mas não chateada. A maioria é conformada. Nivelada. São sujeitos comuns. Sujeitos substantivos comuns. Mas, comuns mesmo. Tão comuns que não passam de sujeitos sem qualquer predicado que lhes dê qualquer relevo. E não só são comuns por uma questão de organização ou vocação fisiológica, mas fazem questão de ser comuns. Diga-se de passagem, que nisto são um exemplo para os boêmios.  Os boêmios deviam fazer como os sujeitos-substantivos-comuns: fazer força para ser boêmios de verdade. Não conciliar. Pois, como eu estava dizendo, os sujeitos-substantivos-comuns são conformados. Não querem mais nada. Aceitam tudo como está. Tudo como acontece. Mas, também, como vão querer se não sabem, nem podem (é uma questão de determinismo fisiológico, me parece) querer ser outra coisa se são comuns? Isto é, indivíduos que vivem unicamente para comer, beber, dormir, ejacular e produzir novos membros do imenso rebanho de sujeitos-substantivos-comuns. Não falo em trabalho. Ninguém gosta de trabalhar. Nem mesmo os sujeitos-substantivos-comuns, que se o fazem, é simplesmente para poderem fazer aquelas outras coisas acima enumeradas.  O boêmio é o antípoda (também por um determinismo fisiológico) do sujeito-substantivo-comum. É alguém que não aceita a chatice do estabelecido e do pronto. Do que está feito. Do que está bitolado. Do dia-a-dia, da rotina, do lugar comum. O boêmio ama o novo, o diferente, o que se renova, a descoberta, o desconhecido, a aventura.
O boêmio é um aventureiro no melhor e no mais largo, no mais dilatado sentido da palavra. É um faminto e um sedento do diferente, do desconhecido, do exótico. Eis o motivo porque ele sempre foi olhado com espanto e com um certo escândalo. Criticam seu modo de vida pelo simples fato de ser um modo de vida diferente do dos demais. Por ele procurar fazer coisas que os outros não fazem ou não sabem ou não podem fazer. Por isso, acham que ele é um errado, um louco.  Um visionário. Na verdade, ele não é acomodado. E todos os que não se acomodam, incomodam os acomodados. Mas isto é uma questão de modo de ver as coisas. É uma questão de perspectiva. A visão dos indivíduos comuns vê o mundo com alguma coisa bem arrumada, com cada coisa em seu lugar. Que me perdoe o Manuel Bandeira. Nisso o boêmio é parecido também com o artista. O artista é alguém que, fundamentalmente, não acredita na arrumação deste mundo. Para o artista o mundo, o universo, é alguma coisa que está exigindo uma arrumação profunda. E o artista está certo. Na verdade, como dizia um amigo meu, por sinal, uma verdadeira vocação de boêmio, Deus foi um grande esbanjador. Esbanjou beleza. O meu amigo falava assim a respeito das mulheres. Mas, acredito que sua ideia pode ser estendida ao resto do [ilegível]. E, nisto, não concordo com Platão. O filosofo grego dizia que Deus foi um grande geômetra: geometrizou o céu e a terra. Qual o quê! Na criação não há nada arrumado nem muito menos geometrizado. Tudo está por ser feito. A criação está apenas começando. O que Deus fez foi pegar uma infinitude de coisas e aí chamou o homem e disse:
– Eu lhe dei inteligência, força e coragem para que você agora continue o trabalho que comecei.
Nisto andam certos e concordes, o boêmio, o artista e o escritor sagrado. É preciso se convencer de que ainda é preciso arrumar o mundo e não pensar como os de visão bitolada, que tudo está bem arrumadinho.
É claro que a ciência e a técnica também querem arrumar o mundo. Mas, a arrumação da ciência e da técnica é diferente da arrumação do artista e do boêmio. Aquela é uma arrumação cartesiana, lógica, fria, racional. Há alguma coisa mais lógica no mundo do que a máquina? Talvez a mente de um louco. A arrumação do artista e do boêmio escapa à lógica, ao racional, ao calculado. Se quisermos, é uma arrumação onírica, intuitiva, humana, cheia de calor humano e afetivo. A arte sempre foi irmã do sonho. E o sonho é o que há de mais em nós mesmos. A razão nos enlouquece. O sonho pode nos surpreender e angustiar. Mas é o que está mais perto da nossa realidade profunda. Por isso acredito que a técnica só não desumanizará o homem se andar de mãos dadas com a arte.
Geralmente, quando se fala em boemia, se pensa em alguém em serenata noite a dentro, em música, em mulher, em amor. E, de fato, isso também é boemia. E da boa. Este, porém, é só um tipo ou um dos modos de manifestação da boemia. Se há o boêmio das noites, da lua, das mesas de bar, da música, do amor que lhe dá sempre um ar de cavaleiro andante, é justamente porque ele não concorda com o mundo arrumado dos sujeitos-substantivos-comuns, dos silogismos, das coisas bem arrumadas. Boemia é, antes de tudo, um estado de espírito. De inconformação, de aventura, de libertação de tudo que possa limitar, aprisionar, encurralar o homem. Para mim a boemia talvez comece, na sua fase mais simples, digamos assim, nas serestas, na bebida, na noctivagação. Mas não se esgota aí e, sim, alcança em suas formas mais sublimes as grandes aventuras do espírito humano que se exprimem através das lendas, dos mitos e se realizam na vida e na obra daqueles que foram capazes de romper as barreiras para levar o homem aos seus mais altos momentos de grandeza humana: Prometeu foi um boêmio divino; Francisco de Assis, o foi. Colombo foi um boêmio; Rimbaud foi um boêmio; Van Gogh, o foi; os astronautas são boêmios (a terra é azul...); Cristo não terá sido um boêmio?...