Texto de L. Ruas, garimpado pelo "catador de papeis" Roberto Mendonça. |
L. Ruas
Pra começo de conversa, faço questão de acentuar que sou do
número daqueles que não aceitam boêmia com acento circunflexo em cima do “e”.
Sei que, segundo os dicionários, não há boemia sem acento circunflexo, mas
neste caso me insurjo contra os dicionários, contra a ortofonia, contra a
ortografia. Para mim o negócio é boemia mesmo. Mia. Esta é que é a verdadeira
boemia.
Outro dia me lembrei que, há tempos atrás, em um de nossos
muitos e prolongados bate-papos ocorridos nessas andanças, naquelas nossas
andanças de antes da Fundação Cultural, de antes da Secretaria de Educação,
quando o tempo não lhe era ainda tão escasso ou ele ainda não precisaria se
tornar tão avarento de tempo, no meio das nossas muitas conversas sobre tão
muitos assuntos, dessas muitas conversas que acontecem toda vez que dois ou
mais amigos se encontram para gastar a noite (já que o dia nos gasta e
desgasta...), o poeta Elson Farias e eu, depois de divagarmos sobre o assunto,
resolvemos que um dia haveríamos de escrever, não sei bem se um livro ou coisa
parecida, sobre a boemia. Mas, pelo que eu vejo, livro mesmo é coisa difícil e,
muito mais, sobre boemia. Por isso, resolvi, ao lembrar aquela conversa,
transmiti-la, mais ou menos aos que me quiserem ler.
Não será necessário esclarecer que o esquecimento, isto é, a
memória, já fez o seu costumeiro trabalho e, com sinceridade, não sei mais
exatamente o que foi que eu disse, naquela ocasião, e o que foi que o Elson
disse. Diante desta incerteza, deixo aqui um aviso aos meus leitores: as
asnices que ocorrerem ficam por minha conta. E as outras asnices, por conta do
Elson.
Mas, vamos à boemia.
De início me parece que boemia e poesia são muito parecidas,
e não só por causa da rima. Pra mim, poeta e boêmio são irmãos gêmeos. Talvez
sejam diferentes apenas em um aspecto: o boêmio é uma espécie de poeta existencial,
vivencial. Ele traz para a vida aquele estado de espírito que é peculiar ao
poeta. Isto explica porque nem todo boêmio é poeta no sentido estrito (que faz
poesia) e nem todo poeta é boêmio, embora este último caso seja muito comum.
Diz um velho (é claro que velho) adágio latino que “poetae
nascuntur”, o que em português quer dizer que os poetas já nascem poetas. Não
adianta fazer força para ser poeta se se não tiver o dom da poesia. No fim dá
em nada, para não dizer que dá em outra coisa mais concreta e viscosa.
Naturalmente, há muitos que tiveram sua “fase poética”. Mas, ter “fase poética”
não é ser poeta. O poeta é poeta sempre, mesmo quando não cria mais poesia
escrita, revelada. Lembremos o caso de Rimbaud. Rimbaud sempre foi um poeta
mesmo quando abandonou o ofício da poesia. Aliás, diga-se de passagem, aqui
temos um caso excelente de poeta-boêmio: Rimbaud. Pois bem. O boêmio também é
assim. Quase todo mundo teve sua “fase boêmia”. Fase que corresponde, mais ou
menos, a já referida fase poética. Mas quem não é poeta assim como quem não é boêmio,
passada aquela fase, mixa. E fica até com vergonha de ter tentado ser uma coisa
ou outra.
A boemia como a poesia é um dom. Quem nasceu para ser boêmio
pode virar do avesso que não deixa. Ou deixa. Mas aí é um frustrado.
Além de dom a boemia é também vocação. Há os boêmios
frustrados do mesmo modo que há os outros frustrados. Aqueles que vivem uma
vida que não cola com as suas aptidões. E que, portanto, não vivem vida
nenhuma. Ninguém escolhe a boemia. Ela é que nos escolhe. Nisto está a
verdadeira vocação. O vocacionado é aquele que não sabe explicar porque é que é
isso ou aquilo. Pergunte, leitor, a um poeta verdadeiro porque ele é poeta.
Duvido que você obtenha uma resposta exata, lógica. A vocação nos obriga e nos
constrange. Não adianta fugir. Nessa história de vocação é como aquela história
do “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Não tem escapatória. E o
verdadeiro poeta e o verdadeiro boêmio têm consciência disso, mesmo quando
acontece como no caso do Poeta de Baudelaire:
Quando, por um decreto das potências supremas,
O Poeta aparece neste mundo de náuseas,
Sua mãe horrorizada e cheia de blasfêmias
Crispa seus punhos para Deus, que se compadece dela:
... “Maldita seja a noite dos prazeres efêmeros
Na qual concebi a minha expiação!...” etc. etc.
Pois é assim. O verdadeiro boêmio, por cima de paus e pedras,
não nega a sua raça... Isto é, sua vocação.
Mas em que consiste o verdadeiro boêmio?
Bem. Devo dizer que não me arriscarei a cair na asnice de
definir o poeta ou o boêmio. Diz o Jorge Tufic que o poeta é transparente. A
gente não sabe o que é ser poeta. Mas se ninguém sabe o que é o poeta, diz
ainda o Tufic, todos sentem o poeta.
Aliás, isso não ocorre só com o poeta. Lembro-me, agora, de um artigo de
Roberto Alvim Corrêa sobre o Pe. Clérrissac. Roberto Alvim Corrêa, que, por
sinal, publicou um belíssimo trabalho sobre François Mauriac no Jornal do
Brasil, dizia que quem se aproximasse do Pe. Clérrissac sentia que estava perto
de um santo. Pela simples presença, pela simples aproximação. Isso ocorre com
quem possui alguma coisa a mais (que não é aquele mais que a Shell lhe dá).
Este é o caso do poeta. É o caso do boêmio. Ninguém pode definir um boêmio, mas
todos sentem o boêmio. Como definir o indefinível?
Contudo, se não me arrisco a escorregar nesta asnice
(conscientemente eu não escorrego, não) de dar uma definição didática tal como
a gente encontra em compêndios sobre arte, do poeta e do boêmio, pra que depois
qualquer imbecil saia dizendo por aí que sabe o que é um poeta ou um boêmio,
atrevo-me a destacar uma característica que me parece indispensável e essencial
a todo boêmio.
Parodiando Euclides da Cunha: o boêmio é, antes de tudo, um
rebelde.
Calma. Não se apresse. Não se trata de rebeldia subversiva.
Nada disso. O boêmio é rebelde no sentido, talvez, da rebeldia do “homem
rebelde” de Albert Camus. Se a palavra, porém, pode parecer digna de qualquer suspeição, digamos, em vez de
rebelde, insatisfeito ou, melhor, chateado. É isso mesmo. O boêmio é um sujeito
chateado. Naturalmente a maioria dos indivíduos não é chateada. É chata, mas
não chateada. A maioria é conformada. Nivelada. São sujeitos comuns. Sujeitos
substantivos comuns. Mas, comuns mesmo. Tão comuns que não passam de sujeitos
sem qualquer predicado que lhes dê qualquer relevo. E não só são comuns por uma
questão de organização ou vocação fisiológica, mas fazem questão de ser comuns.
Diga-se de passagem, que nisto são um exemplo para os boêmios. Os boêmios deviam fazer como os
sujeitos-substantivos-comuns: fazer força para ser boêmios de verdade. Não
conciliar. Pois, como eu estava dizendo, os sujeitos-substantivos-comuns são
conformados. Não querem mais nada. Aceitam tudo como está. Tudo como acontece.
Mas, também, como vão querer se não sabem, nem podem (é uma questão de
determinismo fisiológico, me parece) querer ser outra coisa se são comuns? Isto
é, indivíduos que vivem unicamente para comer, beber, dormir, ejacular e produzir
novos membros do imenso rebanho de sujeitos-substantivos-comuns. Não falo em
trabalho. Ninguém gosta de trabalhar. Nem mesmo os
sujeitos-substantivos-comuns, que se o fazem, é simplesmente para poderem fazer
aquelas outras coisas acima enumeradas.
O boêmio é o antípoda (também por um determinismo fisiológico) do
sujeito-substantivo-comum. É alguém que não aceita a chatice do estabelecido e
do pronto. Do que está feito. Do que está bitolado. Do dia-a-dia, da rotina, do
lugar comum. O boêmio ama o novo, o diferente, o que se renova, a descoberta, o
desconhecido, a aventura.
O boêmio é um aventureiro no melhor e no mais largo, no mais
dilatado sentido da palavra. É um faminto e um sedento do diferente, do
desconhecido, do exótico. Eis o motivo porque ele sempre foi olhado com espanto
e com um certo escândalo. Criticam seu modo de vida pelo simples fato de ser um
modo de vida diferente do dos demais. Por ele procurar fazer coisas que os
outros não fazem ou não sabem ou não podem fazer. Por isso, acham que ele é um
errado, um louco. Um visionário. Na
verdade, ele não é acomodado. E todos os que não se acomodam, incomodam os
acomodados. Mas isto é uma questão de modo de ver as coisas. É uma questão de
perspectiva. A visão dos indivíduos comuns vê o mundo com alguma coisa bem
arrumada, com cada coisa em seu lugar. Que me perdoe o Manuel Bandeira. Nisso o
boêmio é parecido também com o artista. O artista é alguém que,
fundamentalmente, não acredita na arrumação deste mundo. Para o artista o
mundo, o universo, é alguma coisa que está exigindo uma arrumação profunda. E o
artista está certo. Na verdade, como dizia um amigo meu, por sinal, uma
verdadeira vocação de boêmio, Deus foi um grande esbanjador. Esbanjou beleza. O
meu amigo falava assim a respeito das mulheres. Mas, acredito que sua ideia
pode ser estendida ao resto do [ilegível]. E, nisto, não concordo com Platão. O
filosofo grego dizia que Deus foi um grande geômetra: geometrizou o céu e a
terra. Qual o quê! Na criação não há nada arrumado nem muito menos
geometrizado. Tudo está por ser feito. A criação está apenas começando. O que
Deus fez foi pegar uma infinitude de coisas e aí chamou o homem e disse:
– Eu lhe dei inteligência, força e coragem para que você
agora continue o trabalho que comecei.
Nisto andam certos e concordes, o boêmio, o artista e o
escritor sagrado. É preciso se convencer de que ainda é preciso arrumar o mundo
e não pensar como os de visão bitolada, que tudo está bem arrumadinho.
É claro que a ciência e a técnica também querem arrumar o
mundo. Mas, a arrumação da ciência e da técnica é diferente da arrumação do
artista e do boêmio. Aquela é uma arrumação cartesiana, lógica, fria, racional.
Há alguma coisa mais lógica no mundo do que a máquina? Talvez a mente de um
louco. A arrumação do artista e do boêmio escapa à lógica, ao racional, ao
calculado. Se quisermos, é uma arrumação onírica, intuitiva, humana, cheia de
calor humano e afetivo. A arte sempre foi irmã do sonho. E o sonho é o que há
de mais em nós mesmos. A razão nos enlouquece. O sonho pode nos surpreender e
angustiar. Mas é o que está mais perto da nossa realidade profunda. Por isso
acredito que a técnica só não desumanizará o homem se andar de mãos dadas com a
arte.
Geralmente, quando se fala em boemia, se pensa em alguém em
serenata noite a dentro, em música, em mulher, em amor. E, de fato, isso também
é boemia. E da boa. Este, porém, é só um tipo ou um dos modos de manifestação
da boemia. Se há o boêmio das noites, da lua, das mesas de bar, da música, do
amor que lhe dá sempre um ar de cavaleiro andante, é justamente porque ele não
concorda com o mundo arrumado dos sujeitos-substantivos-comuns, dos silogismos,
das coisas bem arrumadas. Boemia é, antes de tudo, um estado de espírito. De
inconformação, de aventura, de libertação de tudo que possa limitar,
aprisionar, encurralar o homem. Para mim a boemia talvez comece, na sua fase
mais simples, digamos assim, nas serestas, na bebida, na noctivagação. Mas não
se esgota aí e, sim, alcança em suas formas mais sublimes as grandes aventuras
do espírito humano que se exprimem através das lendas, dos mitos e se realizam
na vida e na obra daqueles que foram capazes de romper as barreiras para levar
o homem aos seus mais altos momentos de grandeza humana: Prometeu foi um boêmio
divino; Francisco de Assis, o foi. Colombo foi um boêmio; Rimbaud foi um
boêmio; Van Gogh, o foi; os astronautas são boêmios (a terra é azul...); Cristo
não terá sido um boêmio?...