Amigos do Fingidor

quinta-feira, 24 de março de 2022

A poesia é necessária?

 

Ancestralidade

Tainá Vieira

 

I

De meu ventre saem versos,

concebidos na agonia do existir.

Expulsos em meio à dor e à alegria,

ainda que nascidos de mim,

não me pertencem.

 

Deixo-os livres,

vão por aí sem rumo e sem rima,

à procura de ritmos e imagens

que possam lhes dar abrigo.

Pois a natureza

não me fez mãe à sua imagem.

 

Fez-me oca,

fez-me louca,

tal Medeia,

cujos filhos assassinou,

por não controlar o seu instinto

e nem medir o seu amor.

 

II

escrevo

não com a alma de um artista

tampouco escrevo com a paixão de um poeta

 

procuro palavras soltas

para escrever no chão úmido

com as pontas dos dedos

os mais sórdidos segredos

trancados no coração de uma mulher

 

traços essas linhas

com o vermelho sangue

extraído da entranha

do meu ser selvagem

herdado de minha avó

 

se escrevo

não por prazer

ou por querer

dou luz à agonia

que cresceu em mim

gestada por anos

por séculos

desde o dia em que Eva

descobriu seu corpo nu

 

III

Esta mão que escreve versos,

corta o alho e a cebola

diariamente;

lava o peixe,

tempera a carne,

amassa o pão;

separa as frutas,

os legumes

e as sementes.

 

Essa mão,

não é de poeta ou de chef.

É mão de mulher,

de Sônias e de Marias

que vivem perdidas na rotina

sobrevivendo à sina

de cozer e escrever muitas histórias

até o dia em que suas memórias

não souberem mais distinguir

luz e escuridão.

 

IV

o poema

que escrevo

não pretende

e nem almeja

inspirar alguém

 

o verso livre

que a minha caneta desenha

sem ritmo e sem imagem

marca apenas a passagem

do pensamento meu

 

fabricado em noite fria

na minha mente inquieta

que busca na palavra

a sua alma

de poeta