Zemaria
Pinto
How does it feel
To be on your own
With no direction
home
Like a complete
unknown
Like a rolling
stone?[1]
(Bob Dylan)
As pedras doentes da rua do Fio[2] é
o primeiro romance de João Pinto, reconhecido contista piauiense, radicado em
Manaus há mais de 40 anos, autor de Luzes esvaídas (1991), O ditador
da terra do sol (2002) e Contos de uma aula no vermelho (2011). O
romance tem por tema central o Mal de Alzheimer, assunto que tem atraído muitos
autores, desafiados pelas dificuldades impostas pela doença.
Ficção sobre doenças, aliás, não é nenhuma
novidade. O título deste artigo toma emprestada uma ideia de Susan Sontag, que
escreveu o ensaio A doença como metáfora[3]
(Illness as metaphor, 1978), onde examina a literatura que tematiza a
tuberculose e o câncer. O Mal de Alzheimer – também chamado doença de Alzheimer
ou, simplesmente, Alzheimer – tem sido bastante explorado pela literatura.
No plano internacional, o termômetro é o
cinema: quatro filmes de muita repercussão nos últimos 20 anos foram originados
da literatura de ficção, tendo o Alzheimer por protagonista – Iris
(2001), Diário de uma paixão (2004), Para sempre Alice (2014) e Meu
pai (2020). Os dois últimos proporcionaram a seus intérpretes, Juliane
Moore e Antony Hopkins, inúmeros prêmios de melhor atriz/ator, inclusive o
Oscar. Mas, entre outros, não posso deixar de mencionar Amor (2012), um
roteiro original. E quem disse que roteiros de cinema não são literatura?
Um
narrador problemático
O romance, narrado em primeira pessoa,
manifesta o terror pela doença porque o narrador, por herança genética,
considera-se predestinado a ela: sua mãe e duas tias são as “pedras doentes” do
título. Mas o que ele – identificado como João Pintoroco, João Vinvim e João
Ester – não sabe é que sua narrativa já está sob o efeito da doença, sendo
conduzido por ela. Isso o torna um narrador indigno da confiança do leitor,
problemático, sob todos os aspectos, deixando-se levar por um fluxo de
consciência que mistura memórias muito antigas e lembranças recentes, num
diálogo com a personagem identificada apenas como Menina, sobre a qual não
temos nenhuma certeza de sua existência real ou se é invenção do narrador, um
artifício para fazer fluir a narrativa.
Os limites entre memória e invenção
desaparecem, mas, aos poucos, vamos entendendo quem é aquele João narrador.
Professor em Manaus e Manicoré, cidades
que, muitas vezes, generaliza como Amazônia, ele vai costurando retalhos de sua
vida para Menina, prostituta que conhecera em Luzilândia, no Piauí, região do
rio Parnaíba, sua terra natal, onde agora os dois se encontram, ele já
aposentado e ocupado em explodir as saúvas que infestam seu quintal, num claro
paralelo com suas alunas amazônicas. A doença, aliás, desperta a libido de
Vinvim, bem como sua insaciável sede alcoólica. E as lembranças, na memória
devastada, acumulam-se em um mosaico que vai de um terno lirismo à sórdidas
cenas de zoofilia.
Vozes que ele ouve – de pessoas mortas – e
mortos que se materializam, não tornam o romance filiado à literatura
fantástica. Os mortos de João Pinto não têm nenhuma relação com os mortos de
Rulfo ou de Veríssimo, mortos que, pela via do fantástico, materializam um
paradoxal realismo. Os mortos da rua do Fio só existem na mente devastada de
João Vinvim.
Uma
narrativa problemática
As pedras doentes da rua do Fio
tem duas partes e dois narradores claramente definidos, embora sejam um só. A
primeira parte, a referida conversa com Menina, é estruturada como um puzzle
das memórias, verdadeiras ou fantasiadas, do narrador. A narrativa se fecha
quando Magda, amante de Vinvim, o deixa para fazer a vida em Teresina.
Solitário, Vinvim recolhe-se ao seu porão fantástico, onde ele assassinara
Menina, mas, graças à intervenção da padroeira Luzia, ela volta à vida,
costurada, como uma boneca de pano.
Se tivesse terminado neste ponto, teríamos
uma boa ideia do efeito da doença sobre a mente de um professor e, mais que
isso, de um escritor – pois estamos lendo sua narrativa, como fica claro na
segunda parte. Mas esta é uma narrativa problemática – e aqui uso a palavra no stricto
sensu – pois, entre outros problemas, a passagem abrupta da primeira para a
segunda parte desnorteia o leitor.
Hitchcock divertia-se com os enigmas que
criava a partir de algo absolutamente sem importância, que ele chamava de
MacGuffin, termo anterior, popularizado pelo diretor inglês. MacGuffin,
especialmente nos filmes de suspense, é algo que se procura, mas que não tem
importância nenhuma para a trama – aliás, muitas vezes nem é encontrado. Um
MacGuffin clássico, fora do universo hitchcockiano, é o Rosebud de Cidadão
Kane. O MacGuffin de João Pinto é um baú fantástico, que muda de tamanho de
acordo com as necessidades da narrativa.
Ambientada em Manaus, Manicoré e
finalizando em Luzilândia, esta segunda parte começa no tempo em que Vinvim,
que assinava “poesias” com o nome de João Ester, ainda era professor na
“Amazônia”. Às vésperas de voltar para o Piauí, ele tem o seu baú fantástico
roubado, iniciando uma perseguição inusitada a si próprio – ou a seu duplo – e
relembrando situações do passado.
Trata-se de uma estratégia para, pela via
da devastação provocada pela doença na mente do narrador, unir o passado e o
presente, pois ele é menos que uma sombra, sem nenhuma densidade física,
rarefeito, invisível, transparente – mas, absolutamente onisciente. O que é um
paradoxo, pois um narrador protagonista não pode ser onisciente – ou estamos
falando de um demiurgo?
Mariana, sua aluna de Manicoré, faz o contraponto
feminino nesta parte e, mesmo depois de abandoná-lo e ir para Porto Velho,
quando ele toma o caminho para Luzilândia, ela se materializa para ele, como um
arrimo permanente.
Uma questão básica sobre a doença, que não
é levada em conta, é que o Mal de Alzheimer é, sobretudo, um processo de perda.
Assim, a segunda parte, que é um acúmulo de lembranças, fica desconectada da
narrativa descarnada da primeira parte. E ainda integrando o processo de perda,
a memória e a linguagem são as primeiras características do doente a serem
afetadas, mas o narrador não acusa o golpe, pelo contrário: ainda que misture
memória e fantasia, sua linguagem mantém a tensão poética, literária.
A
metáfora da devastação
Em síntese, temos um narrador muito
interessante, na primeira parte; um narrador confuso, na segunda parte – e uma
narrativa que é um reflexo desses narradores: ora brilhante ora confusa ora
apenas funcional. Pergunto-me se não é essa perplexidade que o narrador quer
causar no leitor, provocando-o, como a dizer, do alto de sua inverossímil
onisciência, decifra-me ou te devoro.
O mais importante é que João Pinto construiu um João narrador que nos faz pensar em nossa frágil temporalidade. Muito além da literatura, temos, em As pedras doentes da rua do Fio, um documento palpável da finitude e da provisoriedade da vida – devastável, a qualquer instante –, o que me faz pensar que, num contraponto às pedras doentes, pedras que rolam não criam limo. Está aí o poeta Bob Dylan que não me deixa mentir.
[1] Fragmento de “Like a rolling stone”, de Bob Dylan, do
álbum Highway 61 Revisited (1965). Em tradução livre: Como você se sente
/ Estando por sua conta / Sem direção para casa / Como uma completa
desconhecida / Como uma pedra rolando?
[2] PINTO, João. As pedras doentes da rua do Fio.
Belo Horizonte: Caravana, 2019.
[3] SONTAG, Susan. A doença como metáfora.
Tradução: Márcio Ramalho. Rio de Janeiro: Graal, 1984.