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| A rua Fileto Pires teve vários nomes. Desde 1922, chama-se avenida Sete de Setembro. |
ensaios, contos & outras prosas
Minha família
Solano Trindade (1908-1974)
À Dione Silva
Minha família é incontável
eu tenho irmãos em todas as partes do mundo
minha esposa vive em todos os continentes
minha mãe se encontra
no Oriente e no Ocidente
meus filhos são todas as crianças do universo
meu pai são todos os homens dignos de amor
Por que chorar pelo amor de uma mulher?
Por que estreitar o mundo de um lar
por que prender-me a uma rua
a uma cidade, a uma pátria?
Por que prender-me a mim mesmo?
Oh! Bandeiras,
Enfeitai os meus caminhos!
Oh! Músicas,
Ritmais os meus passos!
Oh! Pares, vinde para que eu baile
E possa conhecer todos os meus
Parentes.
Marco Neves, linguista e filólogo português, ensina pela
Internet que há palavras em outras línguas que não têm equivalência na nossa. E
citou a palavra “merak”, do servo-croata. Significa o prazer em fazer coisas
simples. Como reunir amigos para “petiscar”, tomar uns drinques e conversar.
O saudoso Armando de Menezes, sentindo um formidável “merak”,
reunia académicos e amigos para encontros, sempre às sextas, na antessala da
biblioteca da Academia Amazonense de Letras.
Certa vez, Max Carphentier lembrou aos confrades que na outra
sexta seria feriado. Portanto não haveria o “chá do Armando”. Foi obviamente
uma alusão sarcástica ao famoso chá das quintas entre os acadêmicos da ABL.
Academia Brasileira de Letras. O chá da ABL teve início como um gesto de
cordialidade do fundador Rodrigo Octavio. O chá das quintas-feiras se tornou um
rito da ABL para confraternização exclusiva dos acadêmicos.
O nome “pegou”. O chá do Armando saiu dos muros da Academia
Amazonense e democratizou-se. Patrocinado pelo inesquecível Armando de Menezes,
o chá aconteceu na residência de Anísio Mello, no Sebão Antônio Diniz, no
antigo conservatório de música da Joaquim Nabuco e no Ideal Clube. Além de
outros locais menos cotados.
Participar do chá do Armando sempre foi um “merak” tanto para
Armando quanto para os intelectuais, músicos, artistas, escritores, poetas e
académicos que se agregaram a confraria. Democrática e aberta a todos e todas.
Fábio Augusto, doutorando em História, frequenta o chá desde seus 16 anos. Dos
membros da Academia Amazonense que efetivamente tornaram-se assíduos e
“militantes chazistas”, além do próprio Armando, o Almir Diniz e o Zemaria
Pinto.
O chá das cinco é uma instituição inglesa, como o Big Ben e a
pontualidade britânica. No nosso país, chá ficou sinônimo de encontro entre
senhoras da sociedade para coscuvilhice e planejamento de alguma ação para os
mais necessitados. O da ABL é restrito aos membros da ABL.
Já aqui em Manaus o chá tornou-se sinônimo de reunião entre
amigos e amigas que gostam de conversar sobre livros, música, cinema e artes em
geral. Ou simplesmente exercer o “merak”, esse prazer simples e fundamental.
Reunir-se com amigos para comer, beber e conversar. Um merak.
Com o falecimento de Armando de Menezes e do Almir Diniz
alguns chazistas eméritos decretaram o fim do chá. Então foi criado o chá do
Diniz. Outros criaram confrarias cujo patrono é o Armando. Há o chá do João
Pinto. Há o chá que se tornou simplesmente “o chá”. Com objetivo e composição
bem diversa do “chá de madames” do sudeste. E você, querido leitor ou leitora.
Qual tipo de chá você exerce seu merak?
Balada a favor das últimas manifestações
Fabrício Corsaletti
A favor dos sem partido
sem dinheiro pra passagem
a favor dos estudantes
emperrando as engrenagens
a favor de uma garota
que tinha um olhar selvagem
e carregava um cartaz
escrito apenas “CORAGEM”
vou às ruas e hoje escrevo
uma balada-homenagem
vi um velho de muletas —
velhice = jardinagem —
caminhar cinco quilômetros
na maior camaradagem
vi uma mulher dançando
com seus cabelos na aragem
do alto de um edifício
incentivando a passagem
da passeata — e por isso
rendo aqui minha homenagem
que o governo não ignore —
nem se esconda na folhagem
da retórica política —
essa universal mensagem
pra que a esperança não morra
depois de nadar, na margem
nem a justiça se torne
piada, rancor, miragem
ao eventual ouvinte
do poder, presto homenagem
dói o dia, dói a vida
dói em cada cartilagem
à dor, que nunca termina
me doo nesta homenagem
Pedro Lucas Lindoso
A
cultura surge, segundo alguns antropólogos, quando o homem começa a cozinhar.
Já se comia jaraqui moqueado aqui há muito tempo. Estudos arqueológicos nos
mostram evidências de uso controlado do fogo, incluindo cozimento e manipulação
de calor, por volta de 8.000 a 6.000 anos atrás. Há ainda sítios com indícios
de cozimento em cerâmica, em ambientes de cozinha primitiva, entre 4.000 e
2.500 anos atrás.
Alguns
antropólogos dizem que a cultura começa quando o incesto é reconhecido. O homem
aprende quais mulheres pode e as que não pode acasalar. Esses fatos, como me
ensinaram na disciplina Introdução à Antropologia, tornaram os humanos
diferentes dos animais. Também é
ensinado como surgimento da cultura.
Eu
entendo, na minha concepção de leigo em Antropologia, que a cultura nasce
quando o homem começa a cozinhar. Mesmo porque muitos comportamentos de
acasalamento são influenciados por instintos, sinais químicos, visuais e pelo
ambiente. O incesto pode ocorrer, mas várias espécies possuem mecanismos que
reduzem a chance de acasalamentos entre parentes próximos.
Na
minha opinião a culinária deve ser o ponto chave do início da civilização
humana. Até hoje, grupos étnicos, regiões, cidades, países e até continentes
tem culinária, ou mesmo determinada comida ou prato que os caracteriza.
Quem
disse que a cultura dos povos originários é inferior a cultura dos
colonizadores europeus? Há quem acredite.
Mas é obrigação de todos nós respeitar e preservar. Há pelos menos 8.000
anos, repita-se, se come jaraqui moqueado ou cozido por aqui. Começaram a
substituir pirarucu por bacalhau tem pouco tempo.
É
preciso respeitar e preservar a cultura daqueles que cozinharam antes de nós.
Muitas evidências são indiretas como microrresíduos alimentares, carvão
vegetal, padrões de acidentes de fogo. E
as datas costumam ter margens de erro de algumas centenas de anos. Mas isso não
importa.
Por
outro lado, os indígenas sabem muito bem com quem casar para evitar
degeneração. Cientes de que a consanguinidade pode aumentar a frequência de
mutação genética e doenças recessivas. Muitas tribos planejam os casamentos com
mais expertise do que “europeus civilizados e seus descendentes”.
É
importante preservar a cultura de quem chegou e cozinhou há milênios atrás. Mas
nem todos pensam assim. Eles vivem até hoje protegendo e respeitando a
natureza. Fazendo extrativismo sustentável baseado em conhecimentos ancestrais.
É essencial respeitar os indígenas. Sempre. Atenção, COP 30.
O Assinalado
Cruz e Sousa (1861-1898)
Tu és o louco da
imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.
Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tua alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.
Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco a pouco...
Na Natureza prodigiosa e rica,
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!
Entre
Borba e Itacoatiara, a foz do rio Madeira não é apenas um curso d’água. Carrega
histórias que o mapa não ousa registrar. Bento Pedro Fadoul estabeleceu-se por
lá. O libanês que aprendeu o peso do mundo pelo peso das cargas do regatão.
Muitos turcos, sírios e libaneses vieram para a Amazônia após o advento da
República. Era o auge do ciclo da borracha. A foz do Madeira prometia riqueza.
Ali ficava a porta do rio que levaria as riquezas até a Bolívia, quiçá ao
Pacífico e ao sul do Brasil.
Em
Borba, sob as bênçãos de Santo Antônio, Bento Pedro casou-se com Isabel
Coutinho, cuja família mandaria na cidade e até no Estado do Amazonas por anos.
Por meio do poderoso Monsenhor Coutinho. Pois em Borba quem não era Coutinho
era coitadinho. Isabel era viúva de um judeu chamado Baumann, com quem teve uma
filha chamada Antonietta, adotada por Bento Pedro. Isabel enfrentava o cotidiano
com a coragem e os desafios que cada dia oferece.
Em
Borba, Bento Pedro e Isabel tiveram a filha Brigitta, que viria a ser minha
avó.
Helmosa
e Bianor nasceram sob o burburinho das marés amazônicas, em Itacoatiara,
enquanto o fluxo do látex ainda desenhava bons ventos. O novo século 20
despontava com promessas de mais vida e riqueza. A família de Bento Pedro e
Isabel trazia a continuidade de uma ponte invisível que liga culturas na margem
dos rios da Amazônia. A ponte entre o comércio que se faz com o perder e o
ganhar, entre a hospitalidade e o cuidado com o próximo.
O
regatão não é apenas mercadoria que atravessa a curva do Madeira. É memória que
se desloca, famílias que se movimentam e lares que respiram em várias línguas,
inclusive as dos povos originários.
Bento,
com a calma de quem conhece as coisas bem pesadas, negociava não só o preço do
látex, mas o tempo em que cada casa pode existir entre a espera e o retorno.
Isabel, guardiã de casa e de rotinas, tece redes de cuidados: cozinhas que
aquecem, roupas secando ao sol, olhos que reconhecem o rosto do vizinho.
Antonietta,
Brigitta, Helmosa e Bianor, a cada passo, carregam o presságio de uma geração
que aprenderá a ler o rio não apenas como caminho, mas como memória viva.
Borba e
Itacoatiara, o fluxo do látex, a força do trabalho. Tudo se encontra na curva do Madeira. Bento
Pedro Fadoul não é apenas personagem de uma crônica: é a voz que abriu passagem
entre continentes, entre casas que vão ficando para trás e destinos que se
desenham na margem seguinte.
Antonietta,
Brigitta, Helmosa e Bianor, filhos do encontro e testemunhas de uma história
que não cabe em uma única página, mas que cabe na cadência do rio que continua
a correr, lembrando a todos que a vida é uma travessia que exige coragem, fé e
a capacidade de sonhar em várias línguas.
Bento
Pedro enriqueceu com o regatão. Navegava entre cidades vilas e povoados. O
regatão vendia principalmente secos e molhados. Eram verdadeiras lojas
flutuantes, vendendo e comprando ou trocando todo tipo de coisa e objetos de
comércio.
Brigitta
e Helmosa foram estudar na próspera cidade de Belém. Bianor foi para Paris e
tornou-se aviador. Antonietta casou-se e mudou-se para o Rio de Janeiro.
Brigitta casou-se com Phelippe Daou, em Manaus. Helmosa tornou-se uma
“diceuse”. Declamava poesia nos salões de Manaus com a beleza e o vigor do rio
Madeira, que, ao unir-se ao Amazonas, corre para o mar.
Soneto II
Mario Faustino (1930-1962)
Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler
À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.
Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso
Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser
amado.
Pedro Lucas Lindoso
Aniversário
da cidade. Manaus acorda com o trinado das aves, misturado com barulho dos
automóveis. O cheiro de chuva que ainda está no ar também se misturou com o
cheiro das fábricas do Distrito.
A gente
se consola em saber que aqui, no coração da floresta, a cidade respira junto
com o verde que a abraça. Hoje, a aniversariante é a própria Manaus. 356
anos? Talvez mais. Não importa o número,
importa o pulso que bate junto com a floresta que ainda nos cerca.
A
cidade sorriso ergue a cabeça como quem recebe um parabéns com a boca acolhendo
o verde. E, ao contrário do que dizem os números frios das estatísticas, Manaus
não precisa só de orçamento generoso e emendas parlamentares suspeitas. Precisa
de mãos que cuidem do que é sagrado. A
nossa floresta, os igarapés, a vida que pulsa nos bairros, nas ruas, nas
escolas onde professores ensinam a ouvir o silêncio entre as chuvas. E os
curumins e cunhatãs aprendem a ler os igarapés, mesmo que poluídos, antes de
ler as letras.
Mas
hoje, Manaus, a aniversariante, pede algo simples e urgente. Pede para tirar as
mãos da floresta. Não é um pedido de egoísmo, é um pedido de proteção. É como
quando uma criança pede para que não mexam nos seus desenhos, porque ali estão
as cores que definem quem ela é. A floresta não é apenas o dom que sustenta o
alimento, a água, o ar que respiramos. É também a memória de quem veio do
interior. Os ribeirinhos que lembram
como o rio é uma casa que flutua, os caboclos que defendem cada palmo de mata,
cada boto que cruza o caminho dos rios, como se fosse um sinal.
E quem
são as mãos que Manaus pede para afastar? Não mãos de gente má, mas mãos
famintas de exploração: mãos que desmatam sem perguntar, que pegam sem
devolver, que atendem ao barulho do lucro imediato sem ouvir a advertência do Curupira. Manaus pede, com a voz do vento entre as
copas das samaúmas, que as mãos parem para ouvir o que a floresta tem a dizer.
Nas
festas, a multidão se soma ao coro da natureza. O som das toadas dos bois pede
respeito às matas e ao seu povo. E cada manauara ou visitante que chega para
celebrar, traz uma entrelinha do compromisso. Não apenas admirar, mas cuidar.
Não apenas fotografar, mas proteger. Não apenas mencionar a riqueza, mas
partilhar a responsabilidade de conservar.
O Papa
Francisco, lembrado pela memória de Dom Leonardo que, como cardeal que sabe
ouvir o mundo, nos lembrou o que disse o Papa: “tirem as mãos da África”, para
lembrar que a humanidade não pode se dobrar à lógica do saque. Manaus, hoje,
reescreve essa ideia em tom amazônico: "tirem as mãos da floresta".
Não como grito de possessão, mas como súplica de proteção.
Queremos celebrar o aniversário de Manaus
sendo fiéis à sua essência. Que cada projeto, cada obra, seja acompanhado de
uma pergunta simples. É justo, é
necessário, é justo com a floresta? Porque o aniversário de Manaus não é apenas
marcar mais um ciclo de dias; é renovar o pacto entre cidade e floresta, entre
gente e água, entre o presente que queremos viver e o legado que deixaremos às
futuras gerações.
Feliz
aniversário, Manaus. Que a floresta permaneça em casa, e que as mãos aprendam a
respeitar esse lar comum. E que, como nos ensina a própria natureza, cada novo
dia possa nascer com o compromisso de cuidar, compartilhar e proteger. Para que
a celebração seja longa, silenciosa, serena, como o cantar dos pássaros ao
amanhecer.
Busca
Tenório Telles
Navegante de
mim mesmo:
– mar
inconsútil de lembranças
do que fui
do que
poderia ter sido
: desse
sendo que sou
Tudo o que
perdi:
os sonhos da
infância
o pai que
não chegou ao porto
as primeiras
dores
a descoberta
da vida
a descoberta
da morte
os seres
lendários das matas
os
encantados do rio
os amores
que não se cumpriram
as flores
que não se abriram
os poemas,
os livros que sonhei
a esperança
que não floresceu
os amigos
que partiram
[– tantas
promessas perdidas:]
O que não
fui e perdi
renasceu no
que sou
– matéria do
meu canto
– flores do
meu jardim
Sou essas
pedras
essas flores
caídas
esses sonhos
inconclusos
esses amores
partidos
esses poemas
sem voz
esses livros
sem história
Sou esse mar
e seus náufragos
esse céu sem
estrelas
esse deserto
florido.
Pedro Lucas Lindoso
Tia
Idalina chegou do Rio de Janeiro. Um acontecimento. Chegou bastante
mal-humorada. Reclamou do calor. Fez péssima viagem. Conexão em Brasília.
Desembarcou no portão 2. O embarque para Manaus foi no Portão 28. Quase perde o
voo. Não teve tempo de lanchar. Não
ofereceram nada saudável no avião. Saudades do serviço de bordo da Varig. Essas
empresas aéreas de hoje são uma lástima. Passagens caras e serviço de bordo
péssimo.
Estava
mesmo sem sorte. Foi tomar banho. Faltou água. Limpeza na caixa do prédio. O
porteiro avisou. Então não é culpa da COSAMA. Não existe mais COSAMA. Agora é
Manaus Ambiental. Não tem problema faltar água. Pior foi faltar oxigénio nos
hospitais, na pandemia.
Idalina
foi à farmácia. O remédio para diabetes estava em falta. Mas onde falta
oxigénio em hospital, faltar remédio não é nada. À noite faltou luz. Idalina
imaginou as pessoas morrendo sufocadas por falta de oxigênio e no escuro.
Ela não
se esquece da tragédia da falta de oxigénio. Sua afilhada ligou. Comadre Anita
internada com Covid. A moça desesperada relatando que sua mãe estava morrendo
com falta de ar. Não havia mais oxigênio disponível nos hospitais. Coitada da
minha comadre. Perguntou se a família havia recebido alguma indenização. Que
nada. Centenas de pessoas morreram com falta de ar. Ninguém fala mais no
assunto. A tragédia da falta de oxigênio parece que virou um tabu. Escreveram
um livro sobre isso? Fizeram um documentário? Daria uma minissérie. Alô, Rede
Globo! Ninguém foi preso então? Absurdo. O escritor Zemaria Pinto fez um
roteiro. A produtora Bacaba, sob a direção de Bruno Pantoja, transformou o
roteiro em um curta-metragem: Garrote. É uma ficção que retrata a realidade vivida. Assistam. Vale a pena. Foi só. Ninguém fala no assunto.
Falta
água, falta luz, falta remédio. Falta até oxigênio na pandemia. Não fala mal de
Manaus. Só amazonense pode reclamar da cidade. E isso mesmo. Não está feliz
aqui bye bye e benção. Ora bolas. Eu estou exilada em Copacabana porque quero.
Se tivesse que nascer de novo nasceria aqui.
Estamos
em outubro. Manaus vai fazer 356 anos dia 24. Como assim? Perguntou Idalina. Eu
me lembro tão bem. 24 de outubro de 1948. Celebramos o aniversário de 100 anos
da cidade. Estava no IEA. Instituto de Educação. Manaus deixou de ser vila para
se tornar cidade em 24 de outubro de 1848. O mesmo aconteceu com Santarém. Na
mesma data. De onde tiraram esses 356 anos? Então não sabem que há mais de dez
mil anos já se comia jaraqui por aqui?
Pois é.
Faltam muitas coisas em Manaus. Até bom senso falta. Pode faltar tudo, mas
presta. Eu amo essa cidade. Como dizia a quase-finada Odete Roitman: a cidade
tem lastro.
I don’t like myself
Geraldo Carneiro
queria ser outro, perambular
entre as bandeiras enfunadas de pasárgada
bailar no bas-fond de Baudelaire
navegar no barco de Rimbaud
às vezes veranear nos subúrbios do Inferno
na selva selvagem de Dante
sempre argonauta de ultramares
sem o terror narcísico do espelho:
o mesmo círculo a mesma escrita o mesmo rosto
o mesmo animal confinado
em sua ridícula circunstância
Pedro Lucas Lindoso
Dia 12
de outubro chegou com o cheiro de panqueca vindo da cozinha da Vovó Vera. E o
som alto das falas, risos e algazarras das quatro primas, nossas netinhas. Vovô
Pedro, fantasiado de professor Girafoles, montou e dirigiu um teatro com as
quatro garotinhas amadas.
Maria
Luísa foi a primeira a entrar em cena, vaidosa e estudiosa como sempre. Ela
chegou empunhando um caderno como se fosse um mapa do tesouro. “Abre o pote de
mel karo!” Exclamou, referindo-se ao mel colocado nas panquecas da vovó. Depois,
mostrou uma chave que guarda como se fosse de uma escola flutuante. Tema da
feira de Ciências da escola. Malu já descobriu que ciência pode ser deliciosa.
Podemos misturar cores e fantasias para provar, entre risos, que a matemática
também gosta de brigadeiro.
Maria
Helena, carinhosa, espontânea e sensível, chegou trazendo o sol dentro da
mochila. Abriu espaço na sala para um recital de abraços. Cada abraço tinha uma
promessa de cuidado. Maria Helena em cada sorriso pedia para não se esquecerem
da lição da feira de ciência da escola. Tomar maracujá para se acalmar. Usar
babosa para fortalecer cabelos. Depois, Maria Helena decidiu que a casa
precisava de mais música. Então criou um coral de brinquedos, onde o relógio
marcava o tempo com uma batida de coração. Tudo numa cadência que pareceu
abraçar todo mundo.
Catarina,
curiosa, carismática e conciliadora, assumiu a missão de organizar o reino das
perguntas. “Por que a Lua não mora aqui?”, “Os botos moram no rio junto com os
jacarés?”, E assim nasceu uma oficina de curiosidade. Perguntas em papel
colorido, respostas em forma de histórias, e, claro, uma competição. Quem vai
encontrar mais rápido o objeto perdido pelo professor Girafoles? O resultado
foi em risadas, porque o objeto perdido era, na verdade, a bengala do vovô
Pedro.
Isadora,
simpática, espevitada e de personalidade forte, trouxe a coragem de quem não
tem medo do palco aberto. Ela conduziu uma apresentação improvisada sobre
superpoderes. Cada uma escolhia um poder, demonstrava com gestos, e descobriam
que o maior superpoder é a alegria de partilhar. Isadora organizou uma corrida
de sorrisos, onde quem sorri mais ganha um pastel de vento feito pela prima
Bolha.
Entre
tantas brincadeiras, a casa ganhou o brilho das pequenas vitórias. Quem acerta
a pergunta do professor Girafoles ganha o direito de escolher o desenho da
Netflix. Quem come tudo direitinho recebe um diploma de “Experta em Sabor”;
quem encontra o brinquedo escondido antes do almoço pode escolher o tema da
próxima história.
Os
avós, os papais e as mamães aprendem que a beleza está nos gestos simples, no
riso que sobe do peito, nos olhos que brilham quando alguém descobre que o
mundo é maior quando dividido com quem se ama. Brincar com Maria Luísa, Maria
Helena, Catarina e Isadora é lembrar que o futuro promissor e feliz não é
apenas uma ideia distante. Começa hoje, no compasso de cada abraço aceito, na
curiosidade que não se cala, na gentileza que se multiplica. E, no final do dia
dedicado as crianças e a Nossa Senhora o coração dos pais e avós fica mais
leve, satisfeito, cheio de promessas de que amanhã haverá novas aventuras,
novas risadas e, principalmente, novas memórias para guardar com muito cuidado
no baú do afeto.
Feliz
Dia das Crianças, minhas queridas netas. Que a alegria de ser vovô seja sempre
a nossa brincadeira mais bonita.
Se você ainda não viu Garrote –
ou viu mas ainda não votou para a fase presencial do Festival Taguatinga de
Cinema, você pode votar até o próximo sábado, dia 18.
É muito simples. Entre no site e clique em CADASTRAR – precisa somente do seu nome e um e-mail. Depois é só seguir as instruções.
https://festivaltaguatinga.com.br/festivalTagua/18/assista/curta/filme/4351
Donaldo Mello
Boa noite, velho
amigo Zemaria!
Grato
por compartilhar seu Garrote.
Parabéns pela sua estreia, como roteirista, na linguagem cinematográfica. Você
é um trabalhador incansável e ousado, graças a Deus. Com sua proverbial
simpatia, sempre encontrará bons parceiros. Claro que se trata de uma sua
primeira experiência. Nós, seus leitores, já nos acostumamos à sua afinada voz
nos contos, poemas, ensaios, teatro. Precisamos treinar o ouvido para a
linguagem do cinema. A propósito, sua voz, literalmente, ficou bem, em off, no filme Garrote, reportando notícias no rádio.
Ao
cumprimentar o diretor Bruno Pantoja, suponho que, provavelmente, ele deve
estar 'buscando afiar' um olhar próprio, no contexto de um texto de ficção.
Algo que difere, da visão do cineasta voltado para o “gênero” documentário,
como você informou sobre a experiência do jovem cineasta. A respeito, lembro-me
das memoráveis 'lições de cinema', do notável documentarista Eduardo Coutinho.
Este, que se dedicava, exclusivamente (quase), ao cinema - documentário. Tendo
conseguido, bem antes de se tornar um ícone no gênero, produzir uma das suas
obras ÚNICAS, que consistiu em um misto de documentário e ficção. Refiro-me ao clássico
Cabra Marcado para Morrer, com
fotografia do nosso inesquecível amigo cineasta e professor da UnB Vladimir
Carvalho (irmão de Valter Carvalho, ambos paraibanos).
Pois
então, com esse referencial, entre outros, desses dois amantes do cinema é que
gostava de pensar sobre essa particular carpintaria. Recordo, por outro lado, que
Glauber Rocha dizia, mais ou menos, que "para fazer cinema, basta uma filmadora
e uma ideia na cabeça. O curta metragem Garrote,
com mérito, deixa documentado um fato histórico trágico: a falta de oxigênio
para atender aos pacientes da Covid-19, em Manaus. A falência do setor da
Saúde, na capital do estado do Amazonas. A meu ver, ainda não bem conhecida
país afora, todavia numa perspectiva intimista, que sublinha, na trama do
cotidiano, o conflito ideológico e a tragédia política, perpetrada na
conjuntura conflituosa, que a pandemia da Covid-19, singularmente, produziu em
Manaus tristemente. Abraço amazônico saudoso, extensivo aos seus familiares.
P.
S.: Somente, agora, pude tentar atender, se é que o fiz, seu pedido quanto à
minha opinião sobre o curta metragem Garrote.
Torço para que seja bem acolhido pelo público em geral. Enviei para alguns
amigos e recebi, poucas, mas boas opiniões.
Donaldo Mello é amazonense, radicado em Brasília há mais de
40 anos, e tem dois livros de poesia publicados:
Véspera de azul (Valer/Massao Ohno, 2002) e
Bordado para iniciantes (Valer, 2008).