Amigos do Fingidor

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Arte e literatura de ficção – 2/2

Zemaria Pinto*


Eu convido você a uma longa viagem através da literatura de ficção, tentando entender aquele fenômeno denominado literariedade.

Não há, com certeza, maneira mais convincente de apreender o sentido de uma obra de arte do que vivê-la, senti-la, penetrá-la por inteiro. Daí a necessidade dessa viagem. Porém aqui veremos somente o roteiro. As escalas, você poderá mudá-las ao sabor das estações e dos temporais. Das calmarias e dos vendavais. E do prazer que emanará de cada uma.

Comece com Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. Se você não perceber o descortinar-se de um novo mundo, comece a pensar em desistir. Dos meus conselhos, claro.

Mas tente ainda os contos de Kafka: Na colônia penal, uma brilhante antecipação dos horrores do nazismo. A metamorfose, aquele em que o personagem Gregor Samsa amanhece transformado em um repulsivo inseto, e que é a mais esplêndida análise ficcional da condição humana: o monstro que massacra o homem é a sua própria solidão − familiar, profissional, amorosa.

Se você pensou em ler também O processo, do mesmo Kafka, peço-lhe calma: ainda é muito cedo. Algumas obras exigem um mínimo de maturidade para o leitor.

Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, por exemplo, não é um romance para ser lido: é para ser degustado, com preguiça e prazer, tendo o sol por testemunha, além de deus e do diabo. De Rosa, comece com Sagarana ou Estas estórias: até caem no vestibular...

Em seguida, vá a mi Buenos Aires querido, com Jorge Luis Borges: O Aleph. Mas não deixe de conhecer a simplicidade do conto “O Outro”, de O livro de areia, exemplo radical de literatura de iniciação.

Descubra o Graciliano Ramos de São Bernardo e observe o que se pode fazer quando se tem o domínio da técnica narrativa, como o tinha o velho Graça.

Bem, a lista de sugestões já está bastante extensa e certamente irá ocupá-lo por muito tempo, contudo, não custa nada recomendar ainda o magnífico novelão de Gabriel Garcia Márquez, Cem anos de solidão. Ou, ainda, a prosa barroca do português José Saramago, de Memorial do Convento, os contos de Lucia McCartney, de Rubem Fonseca, o humor ferino de Galvez, o imperador do Acre, de Márcio Souza, e o Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum, um labirinto de espelhos estilhaçados.

O teste final para você ter certeza de ser um leitor qualificado é ler Dom Casmurro, de Machado de Assis, de um só fôlego, em uma tarde chuvosa de domingo.

Se você conseguir encarar o bruxo do Cosme Velho sem cair nas armadilhas do tédio, terá, então, aprendido a separar o joio da má literatura do trigo que é feito com arte.

Haveria dezenas de autores, centenas de livros, dignos de serem indicados. Estes serão descobertos pelo meio do caminho, como os portos que os guias apressados, e invariavelmente malfeitos, esquecem de nomear, mas que nem por isso são menos merecedores de nossa atenção, de nosso carinho.

(*)Escrito e publicado (no Amazonas em tempo) ali pelos meados dos 90, do século passado, a partir das aulas de Teoria Literária, que resultariam, afinal, nO Texto Nu.

Ilustração: foto de Clarice Lispector. Autor desconhecido.