Amigos do Fingidor

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 4/11

João Bosco Botelho

Pecado e doença em Roma e no monoteísmo

1. Em Roma

Essa extraordinária reconstrução grega do pecado atingiu os ritos romanos que impuseram regras mais rígidas para evitar o erro cerimonial nos ritos, reforçando o rito puro e novas estruturas polares: piedade (pietas) e impiedade (impietas). O rito mal conduzido, gerando pecado, doença, malefício, infelicidade, seria consertado por meio de outra cerimônia (expiatio) para anular a impureza (pecado). Nessa esteira, seguiram-se os muitos cultos gnósticos defendendo desprezo pelo corpo, pela coisa. Como seguimento, os ritos corretivos dos pecados tornaram-se violentos, impondo jejuns prolongados e flagelações sangrentas, abrindo caminho para outras construções do pecado sob a égide judaico-cristão.

Simultaneamente, não há consenso em torno do pecado original. Um dos exemplos mais significativo da negativa do pecado original está fincado na fundação de Roma, quando Rômulo mata por banalidade o irmão Remo: enquanto Cícero admite o pecado, no De officius, III, 41 (peccatum), Horácio defende o pressuposto de crime, no Epodon líber, VII, 1 e 17-20 (scelus) e Virgílio, afasta a ideia de pecado.

2. No Antigo Testamento e judaísmo antigo

Uma das entrelinhas mais interessantes ligando a doença ao pecado é representada pela interseção da serpente. A ideia de pecado original no AT mostra-se essencialmente voltado à ordem espiritual (Gênesis 2, 8; 3; Job 14, 1-4; Salmos 50 e Ezequiel 18, 1-32), sem a marca da transmissão à descendência.

A concepção fundamental do pecado AT é representada pela associação com doenças, desgraças, infelicidades e provocando ações para corrigir e evitar novos pecados não mortais (Samuel, 20,1; I Reis, 2,19; II Reis, 1, 1) e pecados mortais (Deutoronômio, 14,16; 21, 22; 22,26; Ezequiel, 3, 20; Amos, 9,10). Nas duas circunstâncias, o perdão do pecador, gerando a cura da doença, a dissolução da infelicidade ou do nó, seria alcançado por meio da confissão individual (Gênesis, 39, 9; Josué, 7, 13-23) e/ou do sacrifício ritual (Levítico, 10,17), onde a vítima é o substituto do pecado, isto é, matando-a, o pecado morreria com ela.

Nos últimos séculos do judaísmo antigo, surgiram reconstruções em torno do pecado original, como fontes de doenças, infortúnios e morte prematura, voltadas à responsabilidade de Eva, em Eclesiastes, 25-24: “Foi pela mulher que o pecado começou e, por sua causa, todos nós morremos.”

3. No cristianismo antigo e medieval

Nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas existem quarenta e oito referências ao pecado. Em várias passagens, Jesus descreve a concepção judia do pecado, diferenciando os pagãos como pecadores por não cumprirem as Leis, sempre pondo na frente a infinita misericórdia de Deus como possibilidade do perdão puro — Nova Aliança —, curando doenças sem ritos, penitências ou sacrifícios. Essa remissão, plena de bondade como dádiva divina e infinita, se tornaria completa com o derramamento do sangue do próprio Cristo, muitíssimo diversa das muitas citações do Antigo Testamento, nas quais inexiste o perdão sem o sacrifício do pecador. No Evangelho de João o maior pecado do mundo é a hostilidade a Deus, o diabo, pré-existente ao homem. Jesus Cristo ao vencer o diabo, remove o pecado, a doença, o aleijão, a infelicidade.

A reconstrução mais significativa do cristianismo está ancorada no claro conceito de pecado original, no ano 397, por Santo Agostinho, entendendo que o homem vive em pecado desde a origem. Essa ideia agostiniana extremamente severa e pessimista foi proclamada no concílio provincial de Cartago, em 418, forçou a diferenciação do pecado original do pecado individual pelo papa Inocêncio III. Ambas foram adotadas pelos pensadores cristãos do medievo europeu, contribuindo para os excessos praticados pelas cortes de justiças eclesiásticas na interpretação dos pecados mortais: soberba, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria, todos sinônimos de doenças, desgraças e mortes. A única solução estava centrada na confissão seguida da penitência.

Desse modo, na Idade Média europeia, os teólogos mantiveram e acrescentaram rigores no entendimento da doença — como obstáculo entre o homem e Deus — como sinal de pecado, em especial, às moléstias deformantes do corpo, como a lepra.