Amigos do Fingidor

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 3/11

João Bosco Botelho


Pecado e doença na Grécia

No período homérico, essa concepção antiga se manteve, essencialmente, expressa com clareza no temor do miasma infeccioso e hereditário, presente em Hesíodo, cuja cura obrigava à purificação ritual para retirar o pecado-doença — a catarse. Posteriormente, a transformação desse pecado, presente em uma pessoa, no pecado original, de concepção coletiva, está presente na cosmogonia e teogonia do orfismo, na morte de Dionísio, como uma doutrina da salvação.

A genialidade grega se interpôs como o primeiro contraste nessas concepções vindas de muitas linguagens-culturas indo-europeias e semitas, que construíram a doença ligada ao pecado como castigo dos deuses aos ousados transgressores da ordem divina.

O iniciante processo de mudança, na Grécia dos séculos 4 e 3 a. C., contribuiu para flexibilizar a interiorização do pecado e consequente minimização dos sentimentos dolorosos. Entre os pré-socráticos, o intuito de desvendar a coisa quantificando-a por meio da forma e do volume, consolidou a continuidade da alteração. Empédocles assume especial importância ao teorizar sobre a origem das coisas fora do poder dos deuses, por meio da combinação dos quatro elementos: terra, ar, fogo e água. A genialidade de Empédocles alicerçou a magnífica teorização de Políbio, genro de Hipócrates e médico da Escola de Cós, na estrutura da teoria dos Quatro Humores, descrita no livro Da natureza antiga, dessa vez, pela primeira vez na História, explicando a saúde e as doenças no domínio laico e, sem dúvida, iniciando o longo processo para retirar dos deuses e deusas a exclusividade de causar e curar as doenças: “O sangue humano contêm sangue, fleuma, bílis amarela e bílis preta; que esses elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza...”.

Um dos aspectos mais fascinantes do esplendor grego é o fato de que a busca da maior razão não abafou o imemorial fascínio pelo divino, pelo mítico. É possível encontrar vestígios desse passado, que interliga sagrado e profano, também no famoso “Sermão”, como marco da Medicina racional, atribuído a Hipócrates (460-375 a.C.), o mais conhecido representante da Escola de Cós, na Grécia. A questão do segredo assume posição esotérica e sagrada, como na confissão religiosa. Lá, certamente, era aceita a orientação seletiva entre os iniciados para receberem a habilitação necessária para poderem exercer a profissão. De modo geral, existe semelhança entre os ritos médico, o pitagórico e o órfico. Essa compreensão é parecida com a encontrada entre os rezadores populares, onde a prática é impossível de ser exercida entre os não iniciados.

Essa inovadora abordagem estava presente também em Eurípedes, que não admitia a desgraça, a doença, de origem divina, mas do pensamento do homem ao recusar a razão frente à violência das paixões, mas com frequentes atenuantes. De certa forma, Eurípedes ao admitir que ninguém é voluntariamente mau e entendendo o pecado como erro, se aproximou das ideias de Sócrates, que defendeu a premissa de o pecado estar interligado à ignorância. Logo, nessa linha, Eurípedes e Sócrates admitiram a educação como a alternativa para evitar o pecado, o erro.

Nesse contexto, fora do poder das divindades, Platão adicionou a possibilidade do fator contaminante do pecado como erro e juntou a necessidade de punir o agente contaminador pelo banimento da polis. A Medicina como paideia é um dos marcos nessa parte da história da humanidade, onde está transparente o conflito de competência entre as três medicinas — oficial, empírica e divina — com o objetivo de ampliar os limites da vida. Esse processo complexo, oriundo desde os tempos imemoriais, alcançou o esplendor na Grécia do século 4 a.C.

A cultura grega, no século 4 a.C., absorveu as origens mais antigas da medicina-divina e da medicina-empírica, mantendo a figura social do médico, em princípio, como dono do saber notável.

Sem abandonar a influência do divino sobre a vida e a morte, os cantos homéricos mostraram o claro destaque do médico como representante da medicina-oficial e agente social na luta contra os agravos à saúde (Ilíada XI, 510: Máxima glória dos povos arquivos, Nestor de Gerena, toma o teu carro depressa; ao teu lado coloca Macáon, e para as naves escuras dirige os velozes cavalos, pois é sabido que um médico vale por muitos guerreiros, que sabe dardos extrair e calmantes deitar nas feridas).

O mesmo médico homérico também marcadamente estava inserido no espaço sagrado das relações sociais. Os médicos Macáon e Podalírio, que se destacaram na guerra de Troia, mencionados por Homero, são os dois filhos de Asclépio, o deus protetor das medicinas gregas.

Essa aparente dualidade homérica, onde as três medicinas mostram-se sobrepostas, reproduz uma herança sócio-cultural muitíssimo mais anterior à cultura grega, perdida no tempo da ontogenia, que a genialidade de Homero tratou de expor.

O deus Asclépio, filho de Apolo com a mortal Corônis conquistou uma fama inimaginável. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Junto com as suas filhas Hígia e Panaceia, era celebrado em grandes festas populares, próximas do dia 18 de outubro, data em que, até hoje, se comemora o dia do médico no Ocidente.

No século 4 a.C., na Grécia, a medicina-oficial expondo abertamente o processo de conflito com outras medicinas, mas compreendida como arte, apresentava-se com clareza na estrutura dos saberes que procuravam desvendar a natureza visível e invisível.

A profissão médica estava tão bem sedimentada em sistemas de aprendizado que influenciou, profundamente, nos vinte séculos seguintes, os caminhos tomados pela medicina-oficial no Ocidente.

A medicina-oficial grega do século 4 a.C., concebida como ciência, nessa condição, deveria valorizar a etiologia (Leucipo de Mileto In: Os Pré-Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural. 1978. p. 297: Nenhuma coisa se engendra ao acaso, mas todas a partir da razão e por necessidade). A busca pela etiologia da doença entendida como pressuposto do diagnóstico e da terapêutica estava escancarada ao futuro: a fisiologia do corpo que amparava a prática dessa medicina-oficial estava ligada aos pré-socráticos, especificamente, aos filósofos jônicos, intérpretes da natureza circundante visível ou não por meio da tékhne.

Um dos fatos que torna essa reflexão fascinante é que, como hoje, longe de haver separação entre as práticas das três medicinas, a crença no poder de cura dos deuses e deusas e o empirismo continuaram fortes e coerentes com o universo cultural grego.

O herói grego continuou associado à cura de doenças e malefícios. O senso comum compreendia grande número de deuses e deusas possuindo, entre os principais atributos, o dom de sarar as doenças e as feridas de guerra (Platon. Oeuvres Complètes. Paris. Ed. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2. Rep. 407d: — Por conseguinte afirmaremos que também Asclépio sabia isto, e que, para os que gozam de saúde física, graças a sua natureza e à sua dieta, mas têm qualquer doença localizada, para os que têm essa constituição, ensinou a Medicina, que expulsa as suas enfermidades por meio de remédios e incisões, prescrevendo-lhes a dieta a que estão habituados, a fim de não prejudicarem os negócios políticos.)

Contudo, o médico atuava muito além do espaço sagrado, continuava exercendo a arte de adivinhar, porém sobre um sistema teórico coerente que observava e interpretava os sinais da natureza visível e invisível.

Esse avanço de dimensões gigantescas ¬— a Medicina como paideia — possibilitou estabelecer a ponte que ligaria, para sempre, a busca da etiologia das doenças ao diagnóstico, tratamento e prognóstico.

Desse modo, a Medicina como paideia feriu profunda e mortalmente o predomínio da medicina-divina e da medicina-empírica sobre a medicina-oficial.