Amigos do Fingidor

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O estranho caso da Vila da Barra – final

Marco Adolfs


Tudo aconteceu muito rápido. A viagem transcorria calma e lenta. Preparávamo-nos para comer alguma coisa quando uma gritaria estridente irrompeu da garganta daqueles índios. Nossa atenção foi então imediatamente voltada em direção aos gritos que nos assustaram. Nunca poderia imaginar a sequência dos episódios sanguinolentos que aconteceram dentro daquela embarcação.

O primeiro a tombar foi o senhor Lourenço.

Uma forte pancada de remo no crânio seguida de uma série de golpes.

Logo em seguida, seu serviçal viu-se cercado e assassinado por três dos índios. Eu só tive a decisão – já que me encontrava por trás daqueles infelizes – de atirar-me para fora do barco, lançando-me no rio e mergulhando bem fundo. Depois nadei como um desesperado na tentativa de salvar a pele. Ao chegar à margem do rio, que naquele trecho por onde cortávamos estava perto, me escondi por entre os troncos e folhagens, até ver o barco afastar-se o máximo possível. Fiquei ali, naquela margem, até o amanhecer do outro dia, quando então resolvi caminhar. Fui ajudado, graças à divina providência, por um casual morador daquelas imediações que saíra para caçar. Contei-lhe que havia caído de um barco e ele ajudou-me a chegar à Barra três dias depois.

Nunca mais soubemos nada sobre o barco e os índios. Na vila todos ficaram sabendo sobre a tragédia e nada aconteceu de providencial. Os portugueses acabaram por desistir do sonho de plantar as sementes da seringa e dominar o mundo. Depois desse episódio lamentável, ao entrar em contato com eles, pagaram-me o que deviam e nunca mais os vi. Passei alguns meses na capital do império resolvendo esse e outros assuntos e, sem perspectiva alguma sobre meu futuro, acabei por voltar à Barra. Diante do acontecido, eu, que não tinha compromisso nenhum, assumi a família do senhor Lourenço. Com a ajuda daquele vereador espertalhão montei uma farmácia de drogas e unguentos bem em frente à travessa do pelourinho, tendo a mente repleta de lembranças dos primeiros instantes da chegada e dos momentos em que a morte esteve em meu encalço. Nunca desisti de tirar algum proveito de toda aquela riqueza sangrada da floresta. E passei muitos anos da minha existência naquele esquecido vilarejo; assistindo, registrando e sentindo de perto o oscilar entre a opulência e a miséria, entre o auge e o declínio, que a extração do látex legou àquele fim de mundo.