Amigos do Fingidor

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 1/11

João Bosco Botelho


Ritos de curas como hierofanias
Desde tempos ágrafos, os homens e as mulheres ora aliaram-se aos panteões, lutando para entender, sem aceitar, a finitude da vida frente à natureza circundante; ora organizaram-se para viver mais e melhor, desafiando a tirânica competência dos deuses e das deusas para curar.

Os ritos de curas, como hierofanias*, são muito mais anteriores se comparados às práticas médicas. Alguns sítios pré-históricos mostram claras comprovações paleopatológicas, com mais de 10.000 anos, de que membros da espécie homo, utilizando artefatos cortantes executaram intervenções deliberadas e repetidas sobre os corpos, como as craniotomias e amputações de membros.

O aparecimento da palavra “médico” nas linguagens-culturas mesopotâmicas esteve associado ao forte marco identificador dos poderes pessoais desses especialistas sociais — curadores de todos os matizes e os reconhecidos como médicos — para intervir na doença, como pressuposta garantia de aumentar os limites da vida e sarar a dor fora de controle, com indissolúvel ligação aos muitos deuses e deusas curadores.

Curadores e médicos entendidos sob essa perspectiva — agentes sociais oriundos de muitas linguagens-culturas capazes de aumentar os limites da vida e sarar a dor fora de controle —, de lá para cá, como história de longa duração, mantiveram esse entendimento nos cinco continentes.

Durante mais de três mil anos, os ritos religiosos de cura inseridos nas idéias e crenças religiosas, além de manterem conflitos de competência com a Medicina, nunca foram abandonados, mais ou menos valorizado em dependência das linguagens-culturas e dos bons ou maus resultados obtidos nos tratamentos médicos. Em certos textos é difícil distinguir onde começava a prática médica e terminavam os ritos de curas.

Sob essa perspectiva, é possível entender a Medicina entremeada em três vertentes:

– Medicina-divina: os agentes entendem a saúde e a doença sob a exclusiva vontade dos deuses e deusas e a cura é obtida por meios de ritos nos lugares sagrados;

– Medicina-empírica: os agentes aceitam a doença do mesmo modo, mas aplicam os conhecimentos historicamente acumulados, da natureza circundante, na busca da cura;

– Medicina-oficial: muito mais recente do que as anteriores, os agentes têm construído e desconstruindo processos teóricos para entender e dominar as doenças fora do poder dos deuses e deusas.

Nos quase quatro mil anos de história, a Medicina-oficial tem mantido diferentes níveis de conflito de competência com a Medicina-divina e a Medicina-empírica. Só no século 19, com maior transparência no Ocidente, esse conflito se polarizou alicerçado em três paradigmas, forçando construções e desconstruções:

– Fisiologia de Claude Bernard;

– Micrologia desvendando os micróbios causadores das doenças infecciosas que atemorizaram a humanidade;

– Estudos de Pasteur instruindo irresistível oposição à crença da existência de formas de vidas larvárias, perniciosas à saúde, vindas dos ares contaminados e fedorentos, entendidos como humores pútridos.

Sem que se conheçam com maior precisão os mecanismos neuroendócrinos responsáveis pelo sofrimento, sem dúvida, a interiorização da crença no pecado gera respostas somáticas com fortes componentes emocionais: medo, angústia, culpabilidade, remorso e alterações do sistema autoimune.

Desse modo, não há dúvida que continuam vivas as construções e desconstruções tecidas em torno do conforto pessoal e coletivo — a ausência da dor, do mal, da doença — gerado na obediência às ordens orquestradas pelos homens, em nome dos deuses e deusas ao longo de milhares de anos.

PECADO E DOENÇA

É possível que a arqueologia desse intricado nó entre Medicina e a religião esteja assentada nas antigas compreensões do pecado como sinônimo de doença. Entre os claros registros nas tábuas de escrita cuneiforme, um é particularmente interessante para demonstrar o quanto as práticas médicas eram atadas aos ritos de curas religiosos: assírios e babilônios entendiam o pecador como doente, débil, angustiado, possesso do demônio (utukku). Os termos sortilégio, malefício, pecado, doença, sofrimento aparecem como sinônimos. A libertação desse pecado, a doença, só seria obtida no rito religioso da confissão e penitência.

Essa compreensão do pecado ligada à doença como sinônimo do mal está mais claramente presente nas religiões que admitem o pressuposto da violação voluntária do livre arbítrio, contra a ordem divina, gerando culpa ao autor do distúrbio, punido com a doença. Desse modo, para apagar o pecado, o mal, a culpa, é necessário cumprir ritos de expiação com componentes interiores: confissão e penitência; e exteriores: rezas e sacrifícios.

Também é possível compreender o pecado não só como uma quebra da norma, mas inerente a condição humana — o pecado original. Heidegger foi mais além ao afirmar: “O homem não está apenas carregado de erros, está em falta”. Essa trilha de Heidegger segue São Paulo (Romanos, 14, 23) onde só a e a graça são os únicos remédios para combater o pecado.

(*) Curas místicas, relacionadas a práticas religiosas.