Amigos do Fingidor

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A Divina Comédia humana 5/6

Alegoria da Igreja prostituída, por Doré,
Canto XXXII do Purgatório.
Zemaria Pinto


IX



A nova jornada tem início. O Paraíso tem características similares ao Inferno e ao Purgatório, mas as suas divisões estão suspensas no ar, gravitando em torno da Terra: são os corpos celestes, que aqui, numa licença poética, chamaremos de céus. O primeiro deles é o céu da Lua, onde se encontram as almas dos impedidos de praticar o bem ou de cumprir os votos religiosos. No céu de Mercúrio estão os que praticaram o bem movidos por interesses materiais. O terceiro céu é o de Vênus, onde se encontram, claro, as almas dos que gozaram os prazeres sensuais, mas se penitenciaram. No céu do Sol encontram-se os teólogos, onde se destaca, luminoso, Tomás de Aquino. O céu de Marte abriga os combatentes da , onde Dante encontra seu antepassado Cacciaguida, que discorre sobre a pureza dos antigos costumes florentinos.  No céu de Júpiter estão os reis e príncipes justos. No silencioso céu de Saturno estão os espíritos contemplativos. No céu das Estrelas Fixas, Dante e Beatriz assistem à alegoria do triunfo de Cristo. No último dos céus, chamado de Cristalino ou Primeiro Móvel, Dante tem a visão da hierarquia celeste. Por fim, no céu imóvel, o Empíreo, Dante tem a visão da Rosa Celestial ou Rosa Mística, encabeçada pela Virgem Maria. Tão friamente quanto aparecera, Beatriz some da visão de Dante para reaparecer ao lado da Virgem, onde se encontra um trono preparado para o imperador Henrique VII, de Luxemburgo, que Dante um dia acreditara poder redimi-lo. Henrique VII morreria em 1313, em meio à escritura do poema. Para guiá-lo no céu de Deus, aparece-lhe Bernardo, o lendário fundador da Ordem Templária, o que colocaria um tempero a mais nas possibilidades de interpretação da Comédia. Bernardo, como um bom guia, intercede junto à Virgem para que seja concedido a Dante contemplar a Deus, sendo a voz para um dos mais belos versos dantescos: “Vergine madre, figlia del tuo figlio...” Ele , então, um tríplice círculo no qual está revelada a Trindade 

Oh! Como é pobre a expressão humana para descrever o que vi! Toda ela, a mais alta, não bastaria para reproduzir o mínimo que eu pretendesse referir. Ó Lume Eterno, que em Ti próprio tens sede, só Tu a Ti entendes e por Ti és entendido, e amas e Te comprazes nesse entendimento!

(O Paraíso, XXXIII, 121-126. Trad. Hernani Donato)



X



A visão beatífica encerra a viagem. Então, voltemos a falar de literatura. Contrariando o senso comum, sempre tive por Beatriz um sentimento que oscila entre a repulsa e o medo. No meu imaginário cristão-juvenil, o demônio sempre tomava as mais belas formas e fazia sempre as promessas mais sedutoras. O paradigma da tentação. Seria Beatriz um disfarce do demônio? Em Vida Nova, concluído, presumidamente, em 1294, Dante diz que a conheceu quando ambos tinham 9 anos e só voltaria a vê-la 9 anos mais tarde. Ele apaixona-se, ela o ignora. Beatriz casa-se aos 22 anos e morre aos 25, no nono dia, do nono mês, da nona década do século, segundo o poeta. Notaram com que insistência o número 9 aparece? Beatriz é apenas uma fantasia platônica do moço Dante ou é uma fantasia literária do poeta Dante? A eleição de uma amada que acompanha o poeta por toda sua obra não começou com os árcades luso-brasileiros, no século XVIII, nem com Petrarca, no XIV. É uma tradição que remonta a Catulo e Ovídio, mil e trezentos anos antes. A novidade introduzida por Dante é a morte da amada: ele não escreve para ela, mas sobre ela. No derradeiro parágrafo de Vida Nova, Dante afirma que “se aprouver àquele por quem todas as coisas vivem que minha vida dure por alguns anos, espero dizer dela o que nunca se disse de mulher alguma.” Se Beatriz Portinari não tivesse morrido tão cedo, teria Dante escrito A Divina Comédia? Ou a heroína teria outro nome? Beatriz, literalmente, significa beata... Mas, por tudo isso, a personagem Beatriz é única: evoluindo do amor humano ao divino, ela é a personificação sacralizada do amor carnal. Jamais haverá outra Beatriz.