Amigos do Fingidor

segunda-feira, 5 de março de 2012

Dicas! Dicas!

Jorge Tufic


Os fatos acontecidos até àquele momento, através de concentradas audiências com algumas personagens tontas de superstição e romantismo, se enquanto duravam lhe mantinham o sistema nervoso como um lago de peixes marulhantes, passadas carruagens e martírios, seu estado de reflexão voltara a mergulhar no vazio. Como tudo que nasce, cresce e morre. A camada gelatinosa da memória é um tecido de encantos. Portanto, caleidoscópico. À medida que se desmonta com as sutilezas da observação desinteressada nos fundamentos cromáticos, mais suas lâminas reduzem as formas do movimento visual, para que se chegue ao movimento real.
O mesmo resulta com as aparências mais simples. Mas será necessário que se parta da simplicidade que é um título como este – UMA ALMA SEM PAZ, impresso no centro de uma página em branco –, para os múltiplos do cosmo verbal metafísico que elegera seus núcleos de expressão nestas quatro unidades semânticas, sem que esta circunstância, no entanto, impusesse qualquer limite ao tempo de vigência ao objeto “sem paz”, ou, como no caso do romancista de Loudun, às 336 páginas de possessora narrativa.

Os fatos que geram a linguagem podem, em contrapartida, gerar novos incidentes por meio de uma linguagem capaz de transformar novos fatos em nova linguagem. Seccionando-lhes a corrida em busca do lógico, torna-se possível desviar o Cavaleiro de Numiers de sua rota, ao servir de fantoche à especulação literária dos psicógrafos, ou desenvolver espaço no sentido de aproveitar as vítimas do arquipélago de Gulag, como elementos de guerrilha contra as ditaduras capitalistas. Não diria o mesmo das mil e uma noites nem das sábias histórias dos derviches, já que a fantasia e a procura da verdade não fazem tão mal quanto transformar a verdade em fantasia.
Traçadas estas linhas gerais, espontaneamente alguns livros desceram das estantes e pousaram no meio da escrivaninha, imitando o deslocamento de objetos por levitação indireta. Ali estavam os três marcos subjetivos que urdiram os primeiros calendários: os egípcios com o reinado de Yokmose, os gregos com as Olimpíadas e os romanos antigos com a fundação de Roma. Em seguida à queda de Roma, inicia-se a Idade Média. Não é mais a leveza de um carro de guerra dos hicsos que ilustra esse longo período de trevas. Em seu lugar é o guerreiro Carlovíngio, que assume a história. A dialética e a astronomia estavam ainda longe de um código de posturas que resguardasse a população dos surtos de epidemia. E, finalmente, a história moderna com os tempos de glória da revolução francesa. Os três quadros dominam, por instantes, a paisagem dos edifícios na moldura da tarde provinciana, quando padre Lactance grita aos ouvidos de Urbano Grandier: “Dicas! Dicas!” Aldous Haxley interfere para esclarecer ao leitor que “o encanto da história e sua lição enigmática consistem em que, de uma época a outra, nada muda, no entanto, tudo é completamente diferente.”

Como tudo é diferente! – sugere Tinoco. As velhas torres esquecidas já deixaram de abrigar andorinhas. Nem por isso deixa-se de vê-las como abrigo de alguma coisa, exceto de andorinhas.  As guerras continuam, salvo que a morte deixou de ser untada com as lágrimas da ausência. As praças parecem desertas, mas em algum lugar, dentro delas, há bosques e fontes onde o corpo se une ao conteúdo das águas. A escravidão foi abolida, porém as grandes indústrias mantêm-se pela força do trabalho. O balcão de Julieta ostenta luminária de butique européia e seu título é Romeo e Juliet.
Dicas, Urbano Grandier, dicas! Enquanto não há dicas, alguns escritores se pintam de Londun e clamam por uma exorcisão interessada, menos no texto do que nos lucros da venda. Texto? As letras se debulham no abatedouro da crise, como galinhas enfurecidas! O manuscrito capeado de sarnas confunde-se com a pele da noite. E o mistério dos fins retoma as algemas do espírito em sinal de que os princípios é que respondem se uma coisa deve ou não ser entendida.

Com isto, adormeceu. Na certeza de que a rotina do seu dia, ligeiramente torcida pelo barlavento, em nada poderia modificar o peso dos átomos sobre a justa engrenagem dos silfos. Muito embora a dança deles seja, como realmente vinha sendo, o espetáculo dos outros.