Amigos do Fingidor

quinta-feira, 15 de março de 2012

Terra de icamiaba, uma utopia amazônica

Zemaria Pinto



Definitivamente, literatura não é um assunto que apaixone multidões. Mas todo ano, alguns milhares de jovens envolvem-se na polêmica a respeito dos livros indicados para o exame vestibular. A maioria deles, com certeza, jamais sequer abriu um livro. De uma hora para outra, entretanto, para defender uma dezena de questões, eles defrontam-se com a obrigação de ler oito livros, entre romance, conto e poesia, sem ao menos saber distinguir os gêneros.

Tirar a literatura do vestibular seria nivelar por baixo. Entretanto, meus amigos, o buraco é mais embaixo: começa lá no ensino fundamental. Mas esse é outro papo.

Sem conhecer uma nova edição desde 1934, a Universidade do Amazonas tirou Terra de icamiaba, de Abguar Bastos, do inferno do esquecimento, através de uma edição que chega a irritar, tantos os erros de revisão. Cheguei a contar, numa única página, até cinco erros, o que é, para dizer o mínimo, pouco didático. Mas vamos ao livro.

Eu disse romance? Tecnicamente, Terra de icamiaba não chega a ser um romance. É uma narrativa que se utiliza de uma estrutura onde a historia principal, contada de maneira linear, é engordada com narrativas paralelas, que se relacionam, às vezes artificialmente, com as diversas personagens surgidas ao longo da trama. Abguar Bastos usa, nessas narrativas paralelas, temas do folclore amazônico, suas lendas e seus mitos. Algo que o romano Petrônio, por exemplo, fez, há dois mil anos, com o delicioso Satiricon. Pena que Abguar Bastos não tenha o mesmo senso de humor de Petrônio.

Pelo contrário, Terra de icamiaba é uma narrativa de um acontecimento idealizado, a revolução do pobre explorado contra o explorador capitalista, vivido por personagens de um maniqueísmo estereotipado: os maus são maus à exaustão; e os bons são tão bonzinhos que chegam a ser chatos. Nesse conflito, o capitalista malvado, não por acaso, é também estrangeiro, o que dá à trama inevitáveis cores nacionalistas. E aí o modernista Abguar Bastos resvala pelo mais incipiente romantismo.

Bepe, o herói, tem contornos épicos, é forte, culto e justo, mas faltou ao jovem escritor (Abguar Bastos tinha 19 anos quando publicou a primeira edição de Terra de icamiaba, com o título pouco literário de Amazônia que ninguém sabe), faltou ao jovem escritor, eu dizia, fôlego para fazê-lo um herói dentro dos padrões da verdadeira tradição épica: o herói que é conduzido à gloria pelo sofrimento. Para compensar essa falha, logo nos primeiros parágrafos, o autor chama Bepe, ingenuamente, de “gênio do lugar”, para que o leitor entenda logo quem vai ser o bambambã da historia.

O enredo é muito simples: Bepe, filho de um migrante cearense com uma paraense, depois de estudar em um seminário, em Belém, onde recebe formação humanista, retorna ao lago do Badajós, região do Amazonas, onde herdara alguma terra de seus pais. Decepcionado com a vida urbana, não demora muito para descobrir que lá no Badajós o povo é explorado por políticos ladrões e cínicos, representados pelo Coronel Epifânio; e pelo capital estrangeiro, representado pelos regatões e agiotas Calazar, judeu, Amar, marroquino, e Lazaril, holandês; finalmente, descobre que ali, no Badajós, a justiça é comprada a peso de ouro, quando um juiz toma-lhe as terras, exploradas há décadas por seu pai, para entregá-las ao bandido Lazaril.

Revoltado, Bepe reúne homens de sua confiança e corta todas as amarras com a civilização estabelecida, seguindo à procura da terra onde “não há tribunais, nem repartições públicas”, e onde “não se vende nada para ninguém; dá-se, com direito a uma oferta recíproca”. Em busca da terra prometida, o grupo dá uma mãozinha à natureza, para que ela se vingue dos agiotas, numa plástica e sangrenta tempestade de ouriços.

As icamiabas do título são as lendárias guerreiras Amazonas, que habitavam as margens do Nhamundá, e que estão na origem mítica de nossa história. Ao conduzir sua gente àquele sítio, Bepe como que simboliza a reinvenção da Amazônia, refundando-a como a cidade Manoa, idealizada sob o signo libertário. Hoje, isso parece bobagem, mas há 70 anos, quando o monstro nazista tomava proporções imensuráveis, e o sonho socialista ainda parecia possível, era uma bela utopia. 

Apesar de todos os seus defeitos, Terra de icamiaba é um livro de leitura fácil e prazerosa. A linguagem, que às vezes apela a um filosofismo vazio, é quase sempre fluida e muitas vezes poética, lembrando o Raul Bopp de Cobra Norato, o grande poema amazônico, contemporâneo de Bastos: 

– quando arco-íris bebe água no Badajós, as flores se miram no ventre da aparição;

– empoleirado nos sopros, um murucututu debulha presságios;

– a madrugada dilacera jasmins e flores de laranja;  

Terra de icamiaba é uma alegoria de fundação. Não de uma nação, como é o caso de Iracema, de José de Alencar, mas de uma nova sociedade, fundada em pressupostos libertários utópicos. Seu esquecimento talvez se dê em função desse absurdo distanciamento da realidade de um mundo tão mesquinho, tão violento, tão injusto. Tão distante do ideal da Terra de icamiaba. 

Obs: publicado há uns 15 anos, no Amazonas em tempo.