Amigos do Fingidor

segunda-feira, 26 de março de 2012

A palavra na ficção 2/2

Jorge Tufic



O mau uso dos diálogos tem sido outro pecado de muitos escritores. É o caso de personagens do tipo zé-prequeté falando como literatos, isto é, o oposto do uso excessivo de gíria ou transcrição da fala do joão-ninguém. José de Alencar é criticado por ter posto nos lábios de seus índios o modo de falar dos portugueses. Porém, o romantismo tinha lá suas leis, como a de que os diálogos nunca reproduzissem a fala dos “sem fala”. O sertanejo que falasse como o doutor da cidade, com acatamento e respeito às normas gramaticais.

Há também o vício da repetição exagerada de vocábulos, na mesma frase, no mesmo parágrafo, no mesmo capítulo, no mesmo conto. Os mais comuns são: “que”, “mas”, “estava”, “era”. Vejamos este caso: “João dos Bois ia levantar mais tarde. Antes de levantar...” Contemos os “que” neste trecho: “Mieko achava que devia voltar à lavoura novamente e conversa com o Noriel a pedir que ele não contasse a ninguém o que tinha acontecido.” Do mesmo livro é a frase: “Foi só depois que o Roberto tinha levado a Arume que a Mieko achou que podia escrever.” 

Semelhante ao senão apontado é o uso forçado de figuras de linguagem, o emprego desnecessário dos artigos, o descuido na conjugação dos verbos, os cacófatos. Tudo isso é muito comum em narradores brasileiros do final século XX e depois. Para isto, dizia-se: “Fulano não tem estilo.”  

Passemos aos personagens. Um dos erros mais comuns é o excesso de personagens em contos. A não ser que somente dois ou três deles participem diretamente da ação. A primeira causa disso será o surgimento de personagens desnecessários, sem lugar na ação, supérfluos. Depois, a confusão no enredo. O tamanho da narrativa não comporta muitos personagens. E não será a evolução do gênero que irá mudar isso.  

E para que personagens sem nome? Cabível em contos com muitos personagens. Somente os principais, dois ou três, terão nomes.  

Outro equívoco de alguns narradores: o aparecimento súbito de um personagem secundário, irrelevante, e o seu repentino desaparecimento. Melhor excluí-lo da história.

Vejamos a descrição dos personagens. O narrador não precisa descrever o caráter dos personagens. Se fulano é mau ou bom, não cabe ao narrador qualificá-lo e, sim, ao leitor. Suas ações e suas palavras o pintarão aos olhos do leitor. Também é ocioso descrever o aspecto físico dos personagens, especialmente em conto. No romance realista e naturalista a descrição não podia faltar. Como não se deliciar o leitor com o corcunda de Notre-Dame? Porém, a descrição não se fazia gratuitamente. Sem o aleijão do personagem o romance não existiria. A descrição de defeitos ou características não faz sentido, a menos que o aspecto físico do personagem seja imprescindível à história. Se fulano é cego, manco, perneta, se assim descrevendo o personagem quis o narrador simplesmente “enfeitar” a história, homenagear alguém, seja lá o que for – a descrição então será uma excrescência. 

Agora a questão do narrador. Durante muito tempo prevaleceu em prosa de ficção a onisciência do narrador, fosse personagem ou não. Porém, tudo mudou a partir de James Joyce. O narrador onisciente desapareceu. Os pensamentos dos personagens não podem ser do conhecimento do narrador. “Fulano tencionava matar sicrano.” “Ele se sentiu culpado de alguma coisa.” A interferência excessiva do autor-narrador é um mal maior para a narrativa. Assim como o excesso de observações e explicações. Não deve o narrador dar informações, sobretudo se inúteis à trama. Exemplo: “Na curva do caminho surgiu um cavaleiro: era o Vadico, um velho conhecido que batia muito na mulher.” Tal informação é até sem sentido no conto, vez que Vadico nem sequer volta à cena.  

Mencionar nomes de cidades, logradouros, somente se absolutamente necessário ao enredo. Dizer que fulano mora na Rua São Sebastião ou na Avenida Dom João poderá ser necessário, sim. Se não o for, para que o nome do logradouro? Nunca explicar o óbvio. Como assim: “Em Fortaleza, a bela capital do Ceará, vivia fulano.” Aliás, nunca explicar nada. “Isto aconteceu porque...” Melhor o mistério. Cada leitor fará uma dedução. Nunca opinar. “Aquela mulher era má.” Cabe ao leitor o julgamento dos personagens. O narrador não é juiz, não decreta nada. Sua função é tão-somente narrar. 

Moreira Campos, um dos mestres do conto brasileiro ou um dos melhores discípulos dos grandes mestres, seguia à risca as lições de Tchecov. Em “Breves palavras”, apresentação do livro Dizem que os cães veem coisas, escreveu: “Sou fiel, quanto à síntese, ao conceito de Tchecov: ‘Se a espingarda não vai atirar no conto, convém tirá-la da sala.’” Ainda desse mestre a advertência de que, “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira.” 

Em suma: para escrever boa prosa de ficção é preciso além de conhecer todas as técnicas de narrar e muito talento  saber lapidar, transpor, alterar, substituir, riscar, cortar, remendar, costurar palavras, frases, parágrafos inteiros. E não ter medo do cesto de lixo, de ser cruel consigo mesmo. Não ter complacência com o vício, o erro, a mediocridade. Não ter piedade nem de si mesmo nem de personagens.