Amigos do Fingidor

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Dolorosa busca da consciência



João Bosco Botelho


A humanidade, caminhando nos espaços sagrados, e profanos tem procurado a natureza da consciência não mensurada, até o momento, imaginada.
No espaço sagrado, consagrando coisas e pessoas, a divindade passou a ser a força motriz de todos os sentimentos. Em consequência, a vontade divina tem sido a dominadora das emoções, restando à humanidade cumprir, fielmente, o determinismo inexorável vindo do invisível, obedecendo às ordens dos representantes na terra do poder transcendente e agradecer, com oferendas e ritos de louvor, a vida vivida.
No espaço profano, buscando a ressonância das ideias na realidade visível e mensurável, homens e mulheres iniciaram a busca para conhecer o próprio corpo escondido atrás da pele e apreender porque chora, ri, ama e odeia.
O esforço para desvendar a consciência tem se mostrado doloroso porque o conjunto teórico está amparado no conflito de competência entre os dois espaços para desfazer as dúvidas e seduzir pelo convencimento.
De um lado, no sagrado, a persuasão tem sido a sagração do corpo e de coisas, transformando-as no centro, para facilitar a comunicação com a divindade. Do outro, no profano, ligado no naturalmente observável e mensurável, tentando legitimar o imaginado.
É história de longa duração!
Os registros em escrita cuneiforme apontam que o fígado era o mais importante, o centro do corpo. É impossível saber a razão exata dessa escolha e não outro órgão como o pulmão e o coração. É possível teorizar em torno da preferência a partir da alta prevalência de doenças hepáticas e febres, provocando icterícias mortais nos habitantes das margens alagadiças dos rios Tigre e Eufrates. Sob esse pressuposto, se alguém pudesse interpretar as variações na forma, na anatomia, do fígado, seria capaz de prever a saúde futura e, por conseguinte, os malefícios e benefícios na vida social. Desse nodo, a adivinhação por meio da hepatoscopia – a interpretação das formas do fígado no carneiro –, para interpretar a vontade da divindade, era prática corriqueira, ao menos entre os que podiam comprar o animal e pagar o adivinho.
O judaísmo, resistindo desde os primeiros tempos à tradição politeísta, deslocou o centro do corpo para o coração, talvez motivado pelas mudanças sentidas no ritmo cardíaco durante as emoções. No Antigo Testamento (AT) existem citações metafóricas do coração como sede da vida física (Ge 18, 5; At 14, 17), da tristeza (Dt 15, 10), da alegria (Dt 28, 47) e do medo (Dt 20, 3).
Confrontando o monoteísmo judaico, os médicos gregos, na Escola de Kós, no século 4 a.C., de modo genial, nos aforismos hipocráticos, aproximaram a consciência do cérebro: “Algumas pessoas dizem que o coração é o órgão com o qual pensamos e que ele sente dor e ansiedade. Porém não é bem assim: os homens precisam saber que é do cérebro e somente do cérebro que se originam os nossos prazeres, alegrias, risos e lágrimas. Por meio dele, fazemos quase tudo: pensamos, vemos, ouvimos e distinguimos o belo do feio, o bem do mal, o agradável do desagradável... O cérebro é o mensageiro da consciência... O cérebro é o intérprete da consciência”.
O cristianismo conservou a interpretação do Antigo Testamento: Deus comunicando-se com os homens por meio do coração (Mc 2, 6 8; Lc 3, 15; 2Co 2, 4). 
O islamismo manteve o coração, entretanto, e foi mais longe: talvez sob influência grega, associou o coração como representante da intuição (“al kashf”, revelação, ato de levantar o véu) e o ponto de identificação (wajd) com o Ser (al wujud). 
O maior desvendar profano do corpo chegou, nos séculos 16 e 17, com os estudos da anatomia e resgatou a maravilhosa percepção dos médicos hipocráticos da Escola de Kós, recolocando a consciência no cérebro. 
A suprema beleza da “Criação do Homem”, pintada por Michelangelo (1475 1564), no teto da Capela Sistina – o homem recebendo de Deus a inteligência, claramente o sistema nervoso central – é a sublime manifestação na arte do deslocamento do coração, como o centro do corpo, para o cérebro, aproximando os espaços sagrados e profanos.