Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Pajé, caraíba e xamã



João Bosco Botelho


É interessante a abordagem de Metraux ao diferenciar as competências dos pajés para curar a doença ou fazer a previsão do tempo ou da colheita, gerando diversas identificações: “Uns tantos dentre eles, todavia, adquiriram certa reputação, que os colocava acima da confraria e lhes dava uma situação superior, recebendo nome de pajé-ouassou ou caraíba, palavra que os antigos autores traduzem por santidade ou homem sagrado”.
Achamos importante levantar algumas indagações lembrando que, entre os médicos, existe uma nítida estratificação pela competência demonstrada pela resolução de doenças pouco comuns, que podem afetar a segurança pessoal ou coletiva. Todos são médicos, porém para caracterizar essa separação, os doentes usam palavras complementares: competente, preparado, estudioso e muitas outras.
Sob esse enfoque, o “Dicionário Histórico”, de Antônio Geraldo da Cunha, ajuda a reforçar o pressuposto ao descrever caraíba: “A cronologia das acepções foi estabelecida com base na documentação histórica adiante descrita. Com efeito, Anchieta informa que o termo indígena caraíba traduz-se por “coisa santa e sobrenatural”, esclarecendo ainda que os índios o adotaram para designar os portugueses. Cardim asseverava, por seu turno, que o termo era aplicado aos feiticeiros indígenas, dando ao vocabulário, todavia, uma conotação pejorativa, pois entre os indígenas, caraíba designava o guia espiritual, espécie de pajé que presidia os seus cultos religiosos, Frei Vicente do Salvador apresenta uma bem fundamentada explicação da origem dos significados assumidos pelo vocabulário caraíba, isto é, homem branco, cristão.
Em algumas situações, de certo modo como em algumas relações entre médicos e doentes, nos relatos dos cronistas, não é fácil separar o fantástico do real.
Lery participa da mesma ideia de que o pajé era diferente do caraíba: “Se acontece cair doente algum deles logo mostra a um amigo uma parte do corpo em que sente mal e esta é imediatamente chupada pelo companheiro ou por algum pajé, embusteiro de gênero diverso dos caraíbas a que me referi no capítulo em que tratei da religião e que corresponde aos nossos barbeiros e médicos. E tais pajés lhe fazem crer não somente que os curam mais ainda que lhes prolongam a vida”.
No capítulo citado, Lery descreve assim os caraíbas: “Os selvagens admitem certos falsos profetas chamados caraíbas que andam de aldeia em aldeia como os tiradores de ladainhas e fazem crer não somente que se comunicam com os espírito e assim dão força a quem lhes apraz, para vencer e suplantar os inimigos na guerra, mas ainda persuadem terem a virtude de fazer com que cresçam e engrossem as raízes e frutos da terra do Brasil”.
Por outro lado, nas notas do capítulo VII, no livro “Religião dos Tupinambás”, Estevão Pinto discorda dessa separação feita por Lery: “Lery quis fazer crer que o pajé não passava de uma criatura de gênero diverso do caraíba. Foi um erro desse calvinista. Todo caraíba era pajé, embora nem todo pajé fosse caraíba”.
Marcgrave, como Estevão Pinto, percebeu o mesmo sentido para as palavras pajé e caraíba: “E tem feiticeiro, os quais dificilmente usam, doutra maneira que médicos, e a estes são sujeitos pelo grande desejo de ver a saúde ser recuperada... Os demais feiticeiros chamam pajé, caraíba, porém é para eles o poder deles de concluir os milagres, razão pela qual os lusitanos, porque muitas coisas faziam, que excediam a inteligência deles, chamavam de caraíbas e assim também hoje na verdade e chamam todos os Europeus”.
Desse modo, essas contradições também podem confirmam algumas dificuldades para apreender os significantes simbólicos, no século 16, das muitas línguas dos índios.