Amigos do Fingidor

terça-feira, 13 de novembro de 2018

As lágrimas de Matilda



                                                                        Guilherme Carvalho


Passei todo o domingo numa grande ressaca, corpo cansado, sono e uma vontade danada de ficar esparramado no sofá da sala, assistindo aos filmes da Matilda. Não, não era uma ressaca etílica, mas uma tristeza que rondava nossos corações.
Depois de um belo almoço com as mulheres mais lindas da minha vida, tomei um bom banho e fui dormir. Dormi boa parte da tarde. Queria que aquele dia passasse logo, ou o que estava por ser anunciado fosse parte apenas de um grande e duro pesadelo. Diante do conforto dessa possibilidade, joguei-me nos braços de Morfeu e afundei na cama, abraçando um travesseiro, como se quisesse testemunha para aquele momento de fuga.
Ao acordar, todos haviam saído. Dei um jeito na pia que estava repleta de pratos e panelas sujas do almoço. Geralmente faço essa tarefa ouvindo música, mas preferi, naquele momento, o silêncio que era quebrado apenas pelo enxaguar dos talheres, pratos, panelas e copos. Tudo lavado, fui direto para o sofá, onde comecei a assistir a um programa sobre a arte da pintura do artista brasileiro Almeida Junior.
Com a chegada das meninas que trouxeram pães, tive que levantar para passar um belo café. Mesa posta, cheiro de café tomando a casa, voltei para o sofá para chamar Matilda, quando ouvi um fungar permeado com soluços vindo do quarto. Maria já estava com ela, acalmando-a, consolando-a. Eu a tomei nos braços, abracei-a bem forte e disse a ela que esse era o momento para ficarmos bem juntos, unidos e fortes para resistirmos a tudo que possa vir desse ex-capitão do Exército brasileiro que pautou toda sua campanha pela truculência e pelo franco desrespeito aos direitos humanos básicos de uma sociedade que se quer democrática. Lembrei a ela do “Resist!”, proferido por Roger Waters durante suas apresentações aqui no Brasil.
Foram uns dias terríveis esses que antecederam ao pleito. Desrespeito a mulheres, ameaças a índios, negros, nordestinos, gays, divulgações de matérias falsas pelos meios sociais contra seu oponente, violência sendo vista e fomentada nos quatro cantos do Brasil e tudo isso mexeu muito com todos os brasileiros, alcançando até uma adolescente, nossa filha Matilda, um poço de sensibilidade. Esse poço transbordou e percebeu tudo o que a sociedade pode perder – aquela parte mais vulnerável da sociedade, principalmente – com a eleição daquele candidato. Percebi naquele choro um misto de tudo o que ela ouvia em casa sobre liberdade, leveza, alegria, tolerância, arte, Deus, amor com aquilo que se sabia e se sentia que poderá vir a ser a rotina de um povo já amplamente desrespeitado pelo estado brasileiro: mais injustiça e dor com a destruição do estado de bem-estar social.
O Jornal Metrópoles anuncia as precauções que a administração da UnB está tomando para conter um provável ataque à Universidade, prometida por partidários do candidato eleito, quando das comemorações por sua eleição.
Essas lágrimas de Matilda serão semeadas aos ventos que as levarão ao encontro das tantas lágrimas de todos os que defendem um Brasil livre de preconceitos, livre de quaisquer amarras contra quaisquer gritos de injustiça, contra quem quer que seja, onde quer que seja. As lágrimas da Matilda vão para o povo que vive da terra lá no longínquo sertão nordestino; vão para as várias Marielles que são diariamente desrespeitadas e oprimidas; vão para os milhares de trabalhadores que colocam suas vidas em risco, quando tomam um transporte de péssima qualidade para defender um trabalho, muitas das vezes, sem direito algum, pois escravos que são; vão para seu professor de biologia, meu irmão e meu sobrinho, representando a comunidade gay; vão para todos os negros e pardos do Brasil que são maioria nos presídios nacionais; vão para os índios que tiveram sua cultura aviltada, suas terras invadidas por banqueiros e latifundiários, ávidos por lucros cada vez maiores. Enfim, essas lágrimas que brotaram do fundo deste coração adolescente, carregam um desejo visceral por um mundo repleto de sonhos e flores, cachoeiras e praias, aventuras e alegrias, borboletas e arco-íris, animais e crianças, brigadeiros e feijão tropeiro... Nesse mundo sonhado pela Matilda, as crianças brincam mais, os adolescentes aventuram-se muito mais e os adultos tem mais tempo para deleitar-se lendo mais livros, ouvindo mais músicas, abraçando-se mais e ficando mais tempo descalços ao lado dos filhos e amigos para ouvir e contar mais histórias.
O mundo semeado com as lágrimas de Matilda ouvirá mais a dor do outro para, assim, ter mais tempo para estender a mão ao próximo, praticando a solidariedade, a caridade. Neste mundo de Matilda não há espaço para opressores e oprimidos. Há uma brisa soprando no rosto, embaraçando cabelos e um sorriso leve, profundo, vigoroso, celebrando a nova aurora que não tardará a surgir.
 Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.