Guilherme Carvalho
Passei todo o domingo numa grande ressaca, corpo cansado,
sono e uma vontade danada de ficar esparramado no sofá da sala, assistindo aos
filmes da Matilda. Não, não era uma ressaca etílica, mas uma tristeza que
rondava nossos corações.
Depois de um belo almoço com as mulheres mais lindas da minha
vida, tomei um bom banho e fui dormir. Dormi boa parte da tarde. Queria que
aquele dia passasse logo, ou o que estava por ser anunciado fosse parte apenas
de um grande e duro pesadelo. Diante do conforto dessa possibilidade, joguei-me
nos braços de Morfeu e afundei na cama, abraçando um travesseiro, como se
quisesse testemunha para aquele momento de fuga.
Ao acordar, todos haviam saído. Dei um jeito na pia que
estava repleta de pratos e panelas sujas do almoço. Geralmente faço essa tarefa
ouvindo música, mas preferi, naquele momento, o silêncio que era quebrado
apenas pelo enxaguar dos talheres, pratos, panelas e copos. Tudo lavado, fui
direto para o sofá, onde comecei a assistir a um programa sobre a arte da
pintura do artista brasileiro Almeida Junior.
Com a chegada das meninas que trouxeram pães, tive que
levantar para passar um belo café. Mesa posta, cheiro de café tomando a casa,
voltei para o sofá para chamar Matilda, quando ouvi um fungar permeado com
soluços vindo do quarto. Maria já estava com ela, acalmando-a, consolando-a. Eu
a tomei nos braços, abracei-a bem forte e disse a ela que esse era o momento
para ficarmos bem juntos, unidos e fortes para resistirmos a tudo que possa vir
desse ex-capitão do Exército brasileiro que pautou toda sua campanha pela
truculência e pelo franco desrespeito aos direitos humanos básicos de uma
sociedade que se quer democrática. Lembrei a ela do “Resist!”, proferido por
Roger Waters durante suas apresentações aqui no Brasil.
Foram uns dias terríveis esses que antecederam ao pleito.
Desrespeito a mulheres, ameaças a índios, negros, nordestinos, gays,
divulgações de matérias falsas pelos meios sociais contra seu oponente,
violência sendo vista e fomentada nos quatro cantos do Brasil e tudo isso mexeu
muito com todos os brasileiros, alcançando até uma adolescente, nossa filha
Matilda, um poço de sensibilidade. Esse poço transbordou e percebeu tudo o que
a sociedade pode perder – aquela parte mais vulnerável da sociedade,
principalmente – com a eleição daquele candidato. Percebi naquele choro um
misto de tudo o que ela ouvia em casa sobre liberdade, leveza, alegria,
tolerância, arte, Deus, amor com aquilo que se sabia e se sentia que poderá vir
a ser a rotina de um povo já amplamente desrespeitado pelo estado brasileiro:
mais injustiça e dor com a destruição do estado de bem-estar social.
O Jornal Metrópoles anuncia as precauções que a administração
da UnB está tomando para conter um provável ataque à Universidade, prometida
por partidários do candidato eleito, quando das comemorações por sua eleição.
Essas lágrimas de Matilda serão semeadas aos ventos que as
levarão ao encontro das tantas lágrimas de todos os que defendem um Brasil
livre de preconceitos, livre de quaisquer amarras contra quaisquer gritos de
injustiça, contra quem quer que seja, onde quer que seja. As lágrimas da
Matilda vão para o povo que vive da terra lá no longínquo sertão nordestino;
vão para as várias Marielles que são diariamente desrespeitadas e oprimidas;
vão para os milhares de trabalhadores que colocam suas vidas em risco, quando
tomam um transporte de péssima qualidade para defender um trabalho, muitas das
vezes, sem direito algum, pois escravos que são; vão para seu professor de
biologia, meu irmão e meu sobrinho, representando a comunidade gay; vão para
todos os negros e pardos do Brasil que são maioria nos presídios nacionais; vão
para os índios que tiveram sua cultura aviltada, suas terras invadidas por
banqueiros e latifundiários, ávidos por lucros cada vez maiores. Enfim, essas
lágrimas que brotaram do fundo deste coração adolescente, carregam um desejo
visceral por um mundo repleto de sonhos e flores, cachoeiras e praias,
aventuras e alegrias, borboletas e arco-íris, animais e crianças, brigadeiros e
feijão tropeiro... Nesse mundo sonhado pela Matilda, as crianças brincam mais,
os adolescentes aventuram-se muito mais e os adultos tem mais tempo para
deleitar-se lendo mais livros, ouvindo mais músicas, abraçando-se mais e
ficando mais tempo descalços ao lado dos filhos e amigos para ouvir e contar
mais histórias.
O mundo semeado com as lágrimas de Matilda ouvirá mais a dor
do outro para, assim, ter mais tempo para estender a mão ao próximo, praticando
a solidariedade, a caridade. Neste mundo de Matilda não há espaço para
opressores e oprimidos. Há uma brisa soprando no rosto, embaraçando cabelos e
um sorriso leve, profundo, vigoroso, celebrando a nova aurora que não tardará a
surgir.
Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais
lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um
novo nível.