Amigos do Fingidor

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Teatro e Resistência: a História no centro do palco





Zemaria Pinto

Teatro contra o cinismo
O ciclo de leituras dramáticas Teatro e Resistência, promovido pela Cia Vitória Régia em janeiro e fevereiro de 2019, no palco do Sinttel-AM, nasceu da necessidade que o grupo, dirigido por Nonato Tavares, sentiu de mostrar, especialmente aos mais jovens, que houve, sim, uma ditadura no Brasil, que se estendeu por 21 anos – período em que se prendeu, torturou e matou muita gente. Há um movimento do mais deslavado cinismo negando esses fatos que já pertencem à História e procurando transformar notórios torturadores e assassinos em heróis.
Como o grupo lida com o teatro, era elementar trabalhar com a leitura dramática – uma por semana, de modo a produzir uma amostra abrangente – de peças que retratassem a época. Partimos de quinze títulos iniciais, que foram sendo filtrados no decorrer do processo, até chegarmos aos sete títulos trabalhados – todos eles relacionados ao intervalo de tempo que vai de 1964, ano do golpe militar, até 1979 – ano da anistia e início efetivo da “distensão” ou “abertura”, que só se concretizaria em 1985, com a saída dos militares do poder. A exceção foi o emblemático Eles não usam black-tie, encenado pela primeira vez em 1958, mas ainda hoje atualíssimo.

Teatro de Resistência
O termo designa peças e/ou autores que se posicionaram francamente contra o regime instaurado em 1964, denunciando-o e criticando-o. Não foi, a rigor, um movimento, como querem alguns apressados, até porque reunia tendências opostas e inconciliáveis, tanto do ponto de vista político como do estético. Olhando pelo ângulo dos detentores do poder no exercício da censura, eram textos e autores a serviço da “conspiração comunista internacional” contra os “valores da civilização cristã ocidental”, conforme atesta Yan Michalski, no seu clássico O palco amordaçado. Para quem pensa que os donos do poder no Brasil de 2019 estão sendo originais, eles apenas repetem a mesma ladainha de 55 anos atrás, usada para justificar o estrangulamento da democracia. 
Além dos autores com os quais trabalhamos, vistos adiante, destacaram-se como “resistentes” Chico Buarque, Millôr Fernandes, Maria Adelaide do Amaral, Consuelo de Castro, Augusto Boal, João das Neves, Jorge Andrade, Paulo Pontes, entre outros.

Teatro e Resistência
Trabalhamos três noites por sete semanas: na segunda-feira, fazíamos a primeira leitura, com o “elenco” disponível; na quarta, fechávamos o elenco e fazíamos uma segunda leitura, pensando nas marcações de palco; na quinta-feira, era feita a leitura para o público. A dificuldade oferecida pela arquitetura dramática de Patética, a segunda peça lida, nos permitiu um salto de qualidade em relação à leitura de O abajur lilás, que foi extremamente convencional, com as rubricas sendo lidas quase integralmente. A Patética nos fez inventar a figura do “narrador”, que, baseado nas rubricas, situava o público no tempo e no espaço, método utilizado nas três peças seguintes, até que, nas peças finais – Zona Franca, meu amor e Papa Highirte – abolimos também a figura do narrador, fazendo pequenas inserções no próprio texto da peça, de modo a situar o espectador, uma vez que não dispúnhamos dos recursos mais elementares como cenário, figurino e luz. Foi um aprendizado. Deu certo. 
Trabalhamos com os seguintes textos:
O abajur lilás (Plínio Marcos) – partindo de uma base alegórica, uma representação realista do Brasil pós AI-5, três prostitutas, um explorador do lenocínio e seu segurança mostram o absurdo das relações entre o poder e os que a ele são submetidos, levando à tortura, à delação e ao assassinato.
Patética (João Ribeiro Chaves Neto) – A trajetória do jornalista Vladimir Herzog – até seu assassinato, sob tortura, em outubro de 1975 – recriada com engenho e arte.
Eles não usam black-tie (Gianfrancesco Guarnieri) – retrata, em primeiro plano, o movimento sindical-trabalhista da era JK; mas a grande tensão da peça está fundamentada no relacionamento entre o pai Otávio e o filho Tião, muito além de um conflito de gerações: um conflito ideológico, discussão muito atual.
Campeões do mundo (Dias Gomes) – o sequestro de um embaixador, contado em flashback por dois sobreviventes anistiados, é o mote para mostrar os conflitos da guerrilha urbana, a tortura e o assassinato, num período que cobre de 1963 a 1979, discutindo também a condição feminina e o exílio a que muitos foram forçados.
Vejo um vulto na janela, me acudam que sou donzela (Leilah Assumpção) – passa-se entre o final de 1963 e os primeiros dias do golpe militar. Uma comédia de costumes espicaçando o extremo conservadorismo da época; um libelo feminista que escancara e ridiculariza esse conservadorismo.
Zona Franca, meu amor (Márcio Souza) – escrita dez anos antes de ser encenada pela primeira vez, manteve-se, e mantém-se, muito atual, na crítica ácida ao modelo Zona Franca de Manaus.
Papa Highirte (Oduvaldo Vianna Filho) – alegoria sobre a solidão de um ditador latino-americano no exílio, em algum momento entre os anos 1940 e 1960. Personagens infames, caricaturas sub-humanas, humor áspero. Vianinha constrói suas personagens como um demiurgo, cheias de sutilezas, para em seguida destruí-las, furioso, sem nenhuma delicadeza.   

Teatro, território livre
Território do livre pensamento, o teatro é de natureza rebelde, mas não inconsequente: ensina criticando e critica ensinando. Mas não ensina verdades – ensina a vida: questionando as verdades estabelecidas, colocando a dúvida acima de qualquer dogma. Isto é a arte. É provocando abalos que ela se renova. Isto é o teatro, há dois mil e seiscentos anos.
Em síntese, a Cia Vitória Régia escolheu o Teatro para iluminar o passado e denunciar as semelhanças com o presente – uma forma de resistência.