Amigos do Fingidor

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Festribal – folclore comprometido com a vida



Zemaria Pinto

Canto para os curumins
nascidos iguais a mim,
vida escura e tanto verde!,
canoa, vento e capim.

(Thiago de Mello,
“Cantiga de caboclo”, do livro
Poesia comprometida com a minha e a tua vida)


A cidade
Juruti, sede do município do mesmo nome, no Pará, com mais de duzentos anos – contados a partir da fundação do hoje distrito Vila Muirapinima, mais conhecido como Juruti Velho, onde a vila teve início – é um dos polos econômicos mais importantes do Baixo Amazonas e do sempre futuro (até quando?) estado do Tapajós, situada entre as duas maiores cidades da região, Santarém e Parintins, esta no Amazonas.
Com uma economia essencialmente extrativista, além dos basilares comércio e serviços, há dez anos o município é explorado pela Alcoa, multinacional do alumínio, que marca sua passagem pelo lugar com boas obras de infraestrutura, que incluem até uma inusitada estrada de ferro, com cerca de 55 quilômetros de extensão – para transporte de minério, claro. Registre-se que o trabalho de prospecção da jazida começou há 19 anos.
A capacidade anual de extração do minério vem, de 2010 a 2016, num ritmo crescente: de 2,6 a 6 milhões de toneladas anuais. Para uma reserva potencial de 700 milhões de toneladas, tomando-se uma média de 12 milhões de toneladas para os próximos anos (contados a partir de 2017, e considerando que a demanda é sempre crescente), projetamos uma vida útil de 56 anos, dos quais três já se passaram. Portanto, 2073 é o prazo fatal para o “descomissionamento” da Alcoa, 73 anos depois do início da prospecção!
Como a expectativa de vida por cidadão, ainda em 2010, era de 70 anos, o pessoal que está hoje acima da faixa dos 17 anos de idade não verá esse cenário, mas viverá o pesadelo do que hoje parece um sonho sem fim.
A Alcoa Juruti tem cerca de 1600 empregados, dos quais, segundo uma fonte, 41% são jurutienses; outra fonte, aumenta esse número para 44%. A diferença, cerca de 50 empregados, é significativa. Então, digamos que é um número entre 650 e 700 empregados. É pouco. Especialmente, se considerarmos a carência da população – repetimos, debatendo-se entre o extrativismo mais elementar, o pequeno comércio e o serviço público sem estabilidade. Ah, a população atual é estimada em mais de 56 mil habitantes, portanto, apenas cerca de 1% trabalha na Alcoa.
Um outro número que chama a atenção, nas duas fontes citadas, e aqui as duas concordam, é a quantidade de mulheres empregadas: 12%. Convenhamos: é um número ridículo. À pergunta “onde se empregam as jurutienses?”, não tenho resposta, mas desconfio que estão alimentando o clandestino mercado de empregadas domésticas, do Pará e do Amazonas.[1]
Minha avó, Mãe Velha, encantada da região tapajônica, do alto de sua sabedoria semianalfabeta, dizia que algo só é bom quando é igualmente bom para todos.
Mas, não foi pensando em economia que comecei este artigo. Queria mesmo era falar de poesia. Mas, antes de falar do fruto, é preciso descrever a árvore. Ouvi isso da Mãe Velha, há mais de 50 anos, e não consigo fazer diferente.

O Festribal
A disputa entre as tribos Muirapinima (azul e vermelho) e Munduruku (amarelo e vermelho) é uma celebração à paz. E para quem vive uma guerra de mais de 500 anos, a paz é um ato de resistência.
Nessa guerra não há trégua: a semana que terminaria com a festa da vitória da tribo Muirapinima começou de maneira perversa, com o assassinato de um líder Wajãpi-Apina, no oeste do Amapá – deus escreve torto?
A disputa entre as tribos jurutienses é um tributo à matrix do boi-bumbá de Parintins, que, por sua vez, é um eco do bumba-meu-boi do Maranhão. Câmara Cascudo situa a difusão da história dos escravos Pai Francisco ou Pai Chico e Mãe Catirina a partir da segunda metade do século XVIII, mas as raízes do boi como símbolo de potência e fertilidade, por meio de manifestações populares, são muito anteriores, com registros em Portugal e Espanha, desde o século XVI. A “brincadeira de boi” ocorre em diversos pontos do Brasil, ainda que com nomes variados: boi-bumbá, bumba-meu-boi, boi de reis, boi de mourão, boi-mamão etc.[2] No Amazonas e no Pará, há inúmeras festas populares envolvendo disputas, como as cirandas, de Manacapuru, e o Sairé, em Santarém, onde concorrem pela primazia das torcidas dois botos.
A diferença da festa de Juruti para as demais está no verbo. Enquanto os demais “brincam” ou “dançam”, as tribos “resistem”. A palavra mais repetida durante as apresentações é resistência. Essa opção é ligada à guerra a que me referi alguns parágrafos atrás. Trata-se de uma ação política, mesmo que o participante mediano não se dê conta disso.
O emblemático tema deste ano foi “Resistência indígena no coração do Brasil”, na 25ª edição do Festribal – sigla para Festival Folclórico das Tribos de Juruti. A partir desse tema geral, as tribos fazem a sua leitura. Mundurukus: “Brasil, não silenciarás nosso canto ancestral”. Muirapinima: “Legado indígena”.

O canto ancestral Munduruku
O texto de apresentação do CD não deixa dúvidas:
Cinco séculos se passaram e nossa luta continua. (...) Querem nos tornar órfãos em nossa própria Pindorama (...), onde sempre se tentou negar o nosso direito de ser e existir. Mas da minha alma emana a força de tantos ancestrais (...) [na] luta histórica em defesa da vida de todas as etnias ameaçadas de extinção. Está escuro, mas a luz da resistência continuará a nos guiar na luta destes tempos sombrios. 
Em paralelo às canções “de brincadeira”, onde o adversário é provocado (“O ‘pinima’ vai correr”) ou prevalece a auto-exaltação (“Mundurukus é show!” e “O campeão do lugar”), com um ritmo que lembra muito as toadas parintintins, prevalece, nas letras, um tom entre o dramático e o trágico, tendo no arcabouço musical uma percussão forte e vibrante, com uma identidade original. Destaco a canção – canto tribal –  que dá título à encenação da tribo Munduruku, “Não silenciarás nosso canto ancestral”, onde o embate do índio com o cariua revela-se no desfiar das nações dizimadas: Yabarana, Juruena, Manaó, Tarumã, Cocuena, Managu, Baré, Tupiniquim.
No chão, as cinzas da ambição!
Marca da ganância do destruidor!
Mas se alguém estiver pensando em autopiedade, um “Ritual antropofágico Tupinambá” é cantado/encenado com a crueza necessária: “tua carne me fortalecerá!”.
A estrela de Cunhambebe deve estar mais brilhante, por estes dias.

O legado Muirapinima
Vistas de longe, com meu míope olhar forasteiro, as tribos se parecem muito, mesmo porque, como se trata de uma competição, alguns itens são obrigatórios – e aí prevalece a criatividade de cada grupo. Como escolhi observar o viés político do Festribal, vou continuar focando nos cantos tribais – as letras fortes, como há muito eu não via, e a percussão ditando não só o ritmo, mas também a harmonia.
A resistência Muirapinima é tão forte quanto à Munduruku, ligeiramente melhor organizada, em relação ao sentido poético do conjunto. Subtemas que soam como provocações: o matriarcado das míticas Icamiabas; o ritual do Kuarup, pelos mortos na guerra contra o cariua; o ritual Kaxinauá, da iniciação pela dor; o funeral Bororo. A guerra permanente é a marca do legado indígena, na visão Muirapinima, do manaó Ajuricaba ao pataxó Galdino. Mas antes, bem antes, a suprema ironia – a língua sagrada da “civilização” como instrumento de extermínio:
Os teus ritos são descrença,
os teus costumes são ofensas (...)
Corre pela mata em rota de pavor,
pois teus joelhos não dobraram diante de um novo senhor.
Um deus que não falava tupi;
um deus que orava, cantava e rezava em latim.
Quinhentos e dezenove anos se passaram e a guerra continua fazendo vítimas, quase sempre do lado mais fraco, que não se entrega nunca, mesmo sob a ameaça permanente de potencialização da agressividade – seja contra as pessoas físicas, os grupos étnicos, as reservas territoriais. É assustador o que vemos/ouvimos na mídia, diariamente. O Festribal faz a sua parte, alertando, reivindicando, denunciando – paradoxalmente, com arte e beleza.      

As cores e seus (possíveis) significados
A simbologia das cores varia a cada cultura – etnias, religiões ou mesmo grupos sociais menores, cada um dá a sua interpretação às cores. Na cultura indígena, as cores têm uma participação muito forte, por isso, não posso deixar de fazer minhas considerações sobre as combinações amarelo-vermelho e azul-vermelho.
É importante começar observando que ambas as tribos escolheram o vermelho – a cor da guerra, por excelência. Não da guerra entre elas – Mundurukus e Muirapinimas –, mas da guerra que elas simbolicamente representam: essa guerra de mais de 500 anos, que se estende na história do Brasil desde que o cariua aqui chegou, tiranizando e exterminando o morador nativo. O vermelho era, portanto, indispensável, para ambas.
O amarelo e o azul, sob determinada corrente simbológica, são cores que se complementam: o amarelo é o sol; o azul é o firmamento. O amarelo é a matéria: o ouro e a terra; o azul é o imaterial, a transparência, o acúmulo de ar ou de água. A psicologia diz que o amarelo representa a intuição; enquanto o azul, a espiritualidade. Esta lista poderia se estender por muitas linhas. O importante é acentuar o caráter intercomplementar das cores: uma e outra se completam, se complementam e se contemplam. E se alguém perguntar “o que seria do amarelo sem o azul?” ou “o que seria do azul sem o amarelo?” a resposta é simples: junte a uma e a outra o vermelho...   

Concluindo
Ouvi a pergunta sobre o que achei de Juruti e do Festribal inúmeras vezes. Minha resposta, com um ar entre o irônico e o enigmático, era “dentro das expectativas”. Mas este artigo não pretendia responder a nenhuma pergunta, apenas manifestar minhas inquietações – sobre Juruti e sobre o Festribal.
Acrescento apenas, para dizer da minha aprovação à cidade e ao festival, que, desde os ensaios aos quais tive acesso até o espetáculo final, passando pelas tribos mirins, formei a ideia de que o Festribal é, sobretudo, um ato político. E isso é muito bom – para Juruti, para a Amazônia e, por que não?, para o combalido Brasil.
Juruti mostra para o mundo que não sofre da doença do pensamento único. Que não teme o autoritarismo e tampouco se põe em posição de subserviência. Antes, questiona e resiste!



[1] Informações extraídas das seguintes fontes:
ABDALA, Fábio. O papel do setor empresarial ao desenvolvimento sustentável na Amazônia. Workshop “As dimensões científicas, sociais e econômicas do desenvolvimento da Amazônia”. INPA, Manaus: 16 de Agosto de 2018. Acesso em 29/07/19:

Atlas do Desenvolvimento Humano: Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento – PNUD; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA; Fundação João Pinheiro – FJP. Atualizado até 2010. Acesso em 29/07/19: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/juruti_pa

Relatório da ABAL – Associação Brasileira do Alumínio. São Paulo: abril/2017.  Acesso em 29/07/19:

[2] CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.