Amigos do Fingidor

sexta-feira, 29 de maio de 2020

A última mensagem de Zeca



Zemaria Pinto


As duas devoções de Zeca eram cerveja e santa Rita de Cássia. O sábado, que começava na sexta, era para a cerveja. O domingo, para a missa na igreja da padroeira, logo cedo, acompanhando D. Joca. E depois, cerveja, que nem só de fé se alimenta o ser humano. Os apelidos masculinos derivavam dos prenomes: Maria José e Maria João. Filha e mãe. Conheci Zeca quando ainda era sargento do Exército e cursava Letras, na UFAM. Aluna acima da média, destacava-se pelas ideias originais e polêmicas. Tinha o seu cânone particular, onde não cabiam escritores com preocupações sociais. Amava o mundo sórdido e refinado de Rubem Fonseca, os conflitos sexo-religiosos da classe média de Nelson Rodrigues e o intimismo corrosivo de Clarice Lispector – e tinha uma inexplicável paixão por Euclides da Cunha, o cadete rebelde que atirou o sabre aos pés do ministro da Guerra, o jornalista-poeta que denunciou o genocídio de Canudos e a escravização do seringueiro amazônico. Mas escrevia pra caralho, ela justificava com seu habitual poder de síntese. Aliás, Zeca falava mais palavrões que um presidente da república, só que com mais classe e graça.      
Quando começou a pandemia, Zeca e D. Joca recolheram-se, como mandava o figurino e o bom senso. Elas e o vira-lata Mandrake. Contatos externos, só o essencial. A casa de bairro, com quintal, varanda e churrasqueira, árvores frutíferas e flores, que vivia cheia de amigos, quedou deserta e silenciosa. Grupo de risco, mano, conversa fiada só no uatizápi. Pois foi pelo aplicativo que eu testemunhei uma transformação inimaginável em Zeca. Sua aversão às posições de esquerda terminara em apoio incondicional ao fascismo emergente – só esse doido pra detonar a petralhada, ela dizia. Andamos meio afastados, depois das eleições. À minha incompreensão – como uma professora pobre, preta e homossexual pode apoiar alguém que odeia professores, pobres, pretos e homossexuais? – respondia com meia dúzia de impropérios. Foi o coronavírus que mostrou a ela, afinal, quem eram os fascistas genocidas: em duas semanas de pandemia, a confiança se transformou em aversão. Tu é doido, mano, esse filho da puta quer matar a gente! Não caio nessa, não!
Zeca foi enterrada no dia 6 de maio, aos 63 anos, às 5 e pouco da tarde. Choviam finos cristais de luz à beira da cova coletiva, onde meia dúzia de amigos choravam sem discrição. Sua última mensagem, datada de quatro madrugadas antes, era um resumo do país pedindo socorro: mano, eu tô fudida!