Zemaria Pinto
As duas devoções de Zeca eram cerveja e santa Rita de Cássia.
O sábado, que começava na sexta, era para a cerveja. O domingo, para a missa na
igreja da padroeira, logo cedo, acompanhando D. Joca. E depois, cerveja, que
nem só de fé se alimenta o ser humano. Os apelidos masculinos derivavam dos prenomes:
Maria José e Maria João. Filha e mãe. Conheci Zeca quando ainda era sargento do
Exército e cursava Letras, na UFAM. Aluna acima da média, destacava-se pelas ideias
originais e polêmicas. Tinha o seu cânone particular, onde não cabiam
escritores com preocupações sociais. Amava o mundo sórdido e refinado de Rubem
Fonseca, os conflitos sexo-religiosos da classe média de Nelson Rodrigues e o
intimismo corrosivo de Clarice Lispector – e tinha uma inexplicável paixão por
Euclides da Cunha, o cadete rebelde que atirou o sabre aos pés do ministro da
Guerra, o jornalista-poeta que denunciou o genocídio de Canudos e a escravização
do seringueiro amazônico. Mas escrevia pra caralho, ela justificava com seu habitual
poder de síntese. Aliás, Zeca falava mais palavrões que um presidente da
república, só que com mais classe e graça.
Quando começou a pandemia, Zeca e D. Joca recolheram-se, como
mandava o figurino e o bom senso. Elas e o vira-lata Mandrake. Contatos
externos, só o essencial. A casa de bairro, com quintal, varanda e
churrasqueira, árvores frutíferas e flores, que vivia cheia de amigos, quedou
deserta e silenciosa. Grupo de risco, mano, conversa fiada só no uatizápi. Pois
foi pelo aplicativo que eu testemunhei uma transformação inimaginável em Zeca.
Sua aversão às posições de esquerda terminara em apoio incondicional ao fascismo
emergente – só esse doido pra detonar a petralhada, ela dizia. Andamos meio
afastados, depois das eleições. À minha incompreensão – como uma professora
pobre, preta e homossexual pode apoiar alguém que odeia professores, pobres,
pretos e homossexuais? – respondia com meia dúzia de impropérios. Foi o
coronavírus que mostrou a ela, afinal, quem eram os fascistas genocidas: em
duas semanas de pandemia, a confiança se transformou em aversão. Tu é doido, mano,
esse filho da puta quer matar a gente! Não caio nessa, não!
Zeca foi enterrada no dia 6 de maio, aos 63 anos, às 5 e
pouco da tarde. Choviam finos cristais de luz à beira da cova coletiva, onde meia
dúzia de amigos choravam sem discrição. Sua última mensagem, datada de quatro
madrugadas antes, era um resumo do país pedindo socorro: mano, eu tô fudida!