Amigos do Fingidor

sexta-feira, 22 de maio de 2020

É primavera no inferno ou O último pesadelo de António Pinto



Zemaria Pinto


António Pinto viu a luz quando a espanhola, que matara seu pai e um irmão, começava a entrar em declínio. Sua mãe morreu no dia seguinte, de complicações do parto. Ele dizia que não nasceu, apenas sobreviveu, a vida inteira. Cem anos depois, seu rude coração de camponês teima em continuar batendo, mesmo depois de rejeitado em vários centros de atendimento médico de Manaus, sempre sob a alegação de falta de leito, quando o grande empecilho era a data de nascimento: uma escolha natural. Em casa, respirando como um bugio, António Pinto sonha.

Meu corpo flutua sobre as ladeiras e vielas de Lisboa. Ao longe, uma voz cansada entoa um melancólico solau. Não há vivalma nas ruas, mas há flores. As vias colorem-se às margens de florezinhas silvestres anis e amarelas, cagadas pela passarinhada, que nada sabe dos problemas humanos. Há cravos vermelhos, também, lembrando que é abril. Quem os plantou, senão as delicadas mãos de uma rapariga saudosa? Nos campos de Andaluzia, um deserto de homens e bichos, mas em Málaga as ruas sem gente explodem em cores violentas: violetas violáceas, dálias vermelhaças, plurissoleados girassóis e até ruborizadas rubiáceas. No Porto, a ponte de D. Luiz está deserta e os teleféricos de Gaia, parados. Na contracorrente do Tejo, me vou até Santarém, mas nada vislumbro além do sol ofuscante, que me põe de chofre em Catalunha, sob uma chuva fina, como uns dedos feminis que um dia me afagaram a tez adolescente. A Resistência, entre Espanha e Portugal: os fascistas não voltarão, jamais. Na Casa de Alienados, onde fui forçado dois anos, meu corpo abalroa-se às paredes, em penoso desequilíbrio. Mas as flores estão lá, no minúsculo jardim central, que cultivávamos com um símbolo da vida que nos lesavam. Em Barcelona, as constelações cintilam sobre o plenilúnio prenhe de primavera. Será assim o paraíso, meu filho?

A voz de António Pinto saía a custo, entre a oração e o lamento. Nem pensei em anotar nada. Agora, de chegada do cemitério, onde ele foi enterrado em uma cova coletiva, com mais dezessete, entre os quais dois anjinhos em claro azul, anoto sua fala descompassada, temendo embelezar sua crueza ou defraudar sua poesia. António Pinto poeta. Propus-lhe uma feita escrever suas falas, repletas de uma poesia indefinível. Sua resposta foi uma gargalhada rouca, entrecortada por um forte acesso de tosse: a poesia que me comove não cabe nos livros, miúdo, só na vida.