Pedro Lucas Lindoso
SEGUNDO ATO
O fotógrafo está sentado numa esteira. Olha para sua máquina fotográfica e começa um
diálogo com ela.
FOTÓGRAFO: Olá minha amiga. Minha consciência.
Meu objeto de trabalho. Quisera eu que você falasse além de registrar as
pessoas, os objetos, a vida. Reza a lenda que Michelangelo teria ficado tão
impressionado com sua escultura de Moisés, que, ao terminá-la, teria exclamado:
Fala! Claro que a estátua não respondeu. E você, querida câmera fotográfica,
por que não me responde?
CÂMERA: Não tenho coragem. Câmeras como eu já
registraram muitas barbaridades contra indígenas. Nem é bom lembrar. O povo
Juma por exemplo. Sofreu um massacre em 1964. De que adiantou registros de
câmeras fotográficas como eu? Somente quinze anos mais tarde houve uma denúncia
e tomaram conhecimento.
FOTÓGRAFO: Então o povo Juma foi exterminado?
CÂMERA: Sobreviveram nove pessoas. Depois
foram levados para Roraima, contra sua vontade. Ficaram por lá por doze anos.
Retornaram ao Amazonas por decisão judicial.
FOTÓGRAFO: Eu sei. Nada disso me foi dada a
oportunidade de registrar. Eu soube que era um pequeno grupo. O cacique me
disse que Aruká foi o único homem Juma que sobreviveu. Ele teve filhas com
casamento de outra etnia. E eu, mais uma vez não pude registrar nada disso. Eu
não! Nós dois.
CÂMERA: Não é sua praia. Você sempre foi
assim. Fugindo das polêmicas.
FOTÓGRAFO: Você está me chamando de covarde?
CÂMERA: Não. Cada um tem sua missão. Você sabe
e também não temos fotos da morte de Aruká, ocorrida durante a pandemia de
covid. Você sabia que ele foi contaminado na própria aldeia? Não fizeram uma
barreira sanitária.
FOTÓGRAFO: Morreu o último homem Juma e nós
não tiramos foto dele.
CÂMERA: Nesse ponto lembre-se que a história
dos Juma não terminou. Essas tragédias se repetem. Você sabe que nós brancos
invadimos sempre a terra dos índios. Há invasão de garimpeiros, madeireiros e
pescadores esportivos. Os pescadores esportivos tiram belas fotos. De peixes,
da floresta. São bons em pescaria, fotos e conflitos. Com indígenas, claro.
FOTÓGRAFO: Mas a Polícia Federal tem atuado
contra violações de garimpeiros em terras indígenas.
CÂMERA: Tem sim. E depois vem a retaliação.
Muitos tiros contra os indígenas e incêndio criminoso nas malocas e casas
deles. Reza a lenda que os primeiros habitantes de Manaus, foram justamente os
Manaus e os Barés. Havia uma rivalidade entre essas duas tribos. Pois bem,
incentivados pelos colonizadores uma dessas tribos incendiou todas as malocas
da tribo rival. Tocar fogo em casa de índio sempre aconteceu. Aconteceu recentemente.
E você nem me levou para trabalhar lá, tirando fotos.
FOTÓGRAFO: Além da retaliação, os garimpeiros
fazem protestos. Soube de um caso em que manifestantes invadiram a base de
operação da Polícia Federal e da Funai. Houve depredação. Um amigo, piloto de
aeronave, teve seu avião todo depredado. Prejuízo para a União. E ainda pegaram
equipamentos e armas de policiais federais. E ficou por isso mesmo.
CÂMERA: O garimpo ilegal, o garimpo
clandestino, é muito danoso para o meio ambiente. Para a floresta e os rios da
região. São usados muitos produtos químicos. É uma desgraça para o meio
ambiente. Principalmente para os rios. A poluição que causam é lastimável. Os
rios e os lençóis freáticos ficam totalmente afetados por isso. Para alguns
indígenas isso ainda é muito pior do que ter suas casas incendiadas. O coletivo
para eles é mais importante. A floresta e os rios são mais importantes do que
qualquer outra coisa. Eles sofrem muito.
FOTÓGRAFO: Nem a presença das Forças Nacionais
inibem os garimpeiros. Eles continuam cometendo atos de violência. Ameaçam. A
lista de crimes é grande: incêndios criminosos, associação criminosa,
exploração ilegal de matéria-prima da União, crime contra o meio-ambiente e por
aí vai.
CÂMERA: E não é só a questão dos garimpeiros e
outros com nossos irmãos indígenas. Há invasão irregular de terras públicas. E
não é só pelo pessoal da agropecuária. Há outros negócios envolvidos. E isso
você não me usa. Não tira fotos.
FOTÓGRAFO: O que eu lamento é que essas
práticas podem prejudicar muito nosso país. Nos acordos internacionais, no
mercado internacional. Podem fechar mercado para nossos produtos. Aqui no
Amazonas temos áreas de reservas extrativistas e de desenvolvimento
sustentável. Isso garante a conservação da biodiversidade e do patrimônio
natural. Mas poucas pessoas parecem saber disso.
CÂMERA: Pois é, vocês precisam melhorar a
informação sobre a legislação que rege a questão do uso da terra e do uso de
recursos naturais. Você que é fotógrafo não deixa de ser um comunicador. A sociedade
precisa ser melhor informada sobre a questão ambiental. Isso é muito sério e
importante.
FOTÓGRAFO: Muito importante. A questão da
terra e seus recursos naturais. Mas há também os índios urbanos. Em Manaus há
muitos, inclusive ocupando áreas irregulares. Bem ou mal há políticas
programadas para os indígenas aldeados. Há as terras demarcadas. E os índios de
Manaus? Precisam implementar também processos demarcatórios para os índios
urbanos. Eles estão esquecidos. Isso também é preocupante. O cacique me
explicava que a questão da distinção entre indígenas aldeados e os que moram na
cidade é uma divisão criada pelo homem branco. O índio sempre esteve nas
cidades. Segundo o cacique, a presença de indígenas nos centros urbanos sempre
existiu. Ele explica que são as cidades que chegaram aos indígenas. Ele advoga
que os indígenas que moram nas cidades precisam ser reconhecidos como indígenas
na cidade.
CÂMERA: Claro. Como máquina que registra tudo
e todos, vejo como de primordial importância que esses índios urbanos mantenham
suas tradições e seus costumes. Quando as administrações do branco não
reconhecem a identidade dos indígenas, também não reconhecem o seu direito ao
território. E mais, os índios têm seu direito negado quanto a educação e saúde
diferenciadas. Até na hora da morte. Enterram indígenas como “pardos”. Não são
pardos. São indígenas. Tem etnia própria. Mudando de assunto, penso que o
artesanato é uma grande saída para eles. Adoro quando sou usada para tirar
fotos de artesanato. Sou fã de artesanato. Os produzidos pelos indígenas são
uma beleza. Precisam realizar eventos de apoio. Durante a pandemia de covid
ficou tudo suspenso. Tanto a venda de artesanato quanto a realização de
eventos.
FOTÓGRAFO: Sem esquecer que o artesanato
fomenta a indústria do turismo. A chamada indústria sem chaminé. O fomento a
esses eventos e ao turismo gera renda. E eles precisam disso para sobreviver
com dignidade. O tal sistema econômico não pode e não deve excluir os índios.
Nem os ribeirinhos também. Os índios não podem ser excluídos. Eles fazem parte
da cadeia. Além da produção de artesanato, os índios trabalham a piaçava, a
piscicultura.
CÂMERA: E o açaí. O açaí nativo, a castanha e
a farinha d’água fazem parte de uma cadeia produtiva que para eles é meio invisível.
Quando esses produtos chegam a Manaus ou a outros centros, quem acaba levando
vantagem é o atravessador. O produto fica onerado e os indígenas, com pouco
lucro. É tudo muito cruel e injusto.
FOTÓGRAFO: É preciso apoio para que eles se
organizem. O que não falta é mercado para esses produtos. Não só no Brasil como
no exterior. Se faz necessário e urgente a organização e potencialização dessas
atividades. Outra coisa importante é a certificação. Os produtos precisam ser
certificados como produtos da floresta. O índio prioriza a floresta. O índio
prioriza a relação com o meio ambiente. Nunca se deve esquecer que a terra é o
sagrado. A terra é o mais sagrado de tudo. Para eles a terra é o princípio de
tudo.
CÂMERA: É a eterna luta pela terra. Mas eles
lutam também por educação e saúde. Ficaram vulneráveis na pandemia. Muitos não
índios consideram os índios como um nativo não civilizado. Há muito
preconceito. Eles sofrem isso. Já registrei isso em fotos. Eles gostam de
aprender com os brancos. Mas os brancos têm muito o que aprender com os
indígenas. Suas histórias, suas tradições, seus costumes. Eles ficam
extremamente ofendidos, e com razão, quando são taxados como atraso para o
desenvolvimento. Geralmente são pessoas que não os conhecem. O respeito só existe
quando há conhecimento.
FOTÓGRAFO: Tem ainda a questão do isolamento.
Eu sempre quis fotografar por lá. Mas temos que respeitar o isolamento.
CÂMERA: Você tem consciência e não vai lá. Mas
os invasores – garimpeiros, madeireiros, caçadores já estão na área. Parece até
que são incentivados.
FOTÓGRAFO: Estou me referindo à terra do Vale
do Javari, na fronteira do Brasil com o Peru. É a região onde estão
concentrados. Trata-se da maior concentração de povos isolados do mundo.
CÂMERA: É de lá mesmo que estou falando. A
situação ficou mais grave durante a pandemia. Houve um total descaso com a
integridade territorial e a segurança sanitária desses povos em isolamento
durante a pandemia de covid-19. Uma lástima. Um crime.
FOTÓGRAFO: Outro dia li que uma tribo do Purus
sofreu forte queda populacional causada pelo sarampo. Isso ainda no século 19.
Veja você, no período áureo de extração da borracha. Muito triste tudo isso.
CÂMERA: Com o ciclo da borracha foram
intensificados os contatos com os europeus. Os indígenas foram atraídos para a
aquisição de ferramentas e outros itens. Nessa época, eles faziam saques nos
seringais, nas chamadas “colocações” e acampamentos de seringueiros.
FOTÓGRAFO: É, mas cada povo manteve uma
experiência particular de interação com os extrativistas, com os seringueiros e
seringalistas, assim como outros habitantes que se instalaram na região.
CÂMERA: Eu conversava com uma índia velha que
me contou uma história impressionante. A narração se inicia quando uma esposa
jovem tem relação com uma cobra sucuri. A moça levava caiçuma para o seu
marido. Se perdeu na floresta e foi abusada por uma cobra sucuri. Incrível essa
história. Daí nasceu uma criança-cobra. Foi um susto para todos. Então o avô da criança resolveu queimar o
bebê. Essa tragédia causou um grande dilúvio. E pasmem! Só sobreviveu a mãe e
sua irmã. Elas treparam num pé de árvore. Após o dilúvio, as irmãs desceram e
começaram a andar pelo mundo, procurando os seus parentes.
FOTÓGRAFO: Vamos descansar, amanhã tirarei as
últimas fotos e partiremos. Tenho muito o que fazer na cidade. Minha família
está reclamando das minhas ausências.
CÂMERA: Você é que sabe. Estou sempre com
você. Sou sua câmera, sua consciência, sua amiga. Vamos relaxar.
(Fim do segundo ato.)
Continua no próximo sábado...