Amigos do Fingidor

sábado, 23 de outubro de 2021

Basta! A tribo está cansada 2/4

 Pedro Lucas Lindoso

 

SEGUNDO ATO

O fotógrafo está sentado numa esteira.  Olha para sua máquina fotográfica e começa um diálogo com ela.

 O Fotógrafo conversa com a máquina. A câmera está estrategicamente colocada numa banqueta bem visível pela plateia. Suas respostas obviamente só serão por áudio de voz feminina.

 

FOTÓGRAFO: Olá minha amiga. Minha consciência. Meu objeto de trabalho. Quisera eu que você falasse além de registrar as pessoas, os objetos, a vida. Reza a lenda que Michelangelo teria ficado tão impressionado com sua escultura de Moisés, que, ao terminá-la, teria exclamado: Fala! Claro que a estátua não respondeu. E você, querida câmera fotográfica, por que não me responde?

CÂMERA: Não tenho coragem. Câmeras como eu já registraram muitas barbaridades contra indígenas. Nem é bom lembrar. O povo Juma por exemplo. Sofreu um massacre em 1964. De que adiantou registros de câmeras fotográficas como eu? Somente quinze anos mais tarde houve uma denúncia e tomaram conhecimento.

FOTÓGRAFO: Então o povo Juma foi exterminado?

CÂMERA: Sobreviveram nove pessoas. Depois foram levados para Roraima, contra sua vontade. Ficaram por lá por doze anos. Retornaram ao Amazonas por decisão judicial.

FOTÓGRAFO: Eu sei. Nada disso me foi dada a oportunidade de registrar. Eu soube que era um pequeno grupo. O cacique me disse que Aruká foi o único homem Juma que sobreviveu. Ele teve filhas com casamento de outra etnia. E eu, mais uma vez não pude registrar nada disso. Eu não! Nós dois.

CÂMERA: Não é sua praia. Você sempre foi assim. Fugindo das polêmicas.

FOTÓGRAFO: Você está me chamando de covarde?

CÂMERA: Não. Cada um tem sua missão. Você sabe e também não temos fotos da morte de Aruká, ocorrida durante a pandemia de covid. Você sabia que ele foi contaminado na própria aldeia? Não fizeram uma barreira sanitária.

FOTÓGRAFO: Morreu o último homem Juma e nós não tiramos foto dele.

CÂMERA: Nesse ponto lembre-se que a história dos Juma não terminou. Essas tragédias se repetem. Você sabe que nós brancos invadimos sempre a terra dos índios. Há invasão de garimpeiros, madeireiros e pescadores esportivos. Os pescadores esportivos tiram belas fotos. De peixes, da floresta. São bons em pescaria, fotos e conflitos. Com indígenas, claro.

FOTÓGRAFO: Mas a Polícia Federal tem atuado contra violações de garimpeiros em terras indígenas.

CÂMERA: Tem sim. E depois vem a retaliação. Muitos tiros contra os indígenas e incêndio criminoso nas malocas e casas deles. Reza a lenda que os primeiros habitantes de Manaus, foram justamente os Manaus e os Barés. Havia uma rivalidade entre essas duas tribos. Pois bem, incentivados pelos colonizadores uma dessas tribos incendiou todas as malocas da tribo rival. Tocar fogo em casa de índio sempre aconteceu. Aconteceu recentemente. E você nem me levou para trabalhar lá, tirando fotos.

FOTÓGRAFO: Além da retaliação, os garimpeiros fazem protestos. Soube de um caso em que manifestantes invadiram a base de operação da Polícia Federal e da Funai. Houve depredação. Um amigo, piloto de aeronave, teve seu avião todo depredado. Prejuízo para a União. E ainda pegaram equipamentos e armas de policiais federais. E ficou por isso mesmo.

CÂMERA: O garimpo ilegal, o garimpo clandestino, é muito danoso para o meio ambiente. Para a floresta e os rios da região. São usados muitos produtos químicos. É uma desgraça para o meio ambiente. Principalmente para os rios. A poluição que causam é lastimável. Os rios e os lençóis freáticos ficam totalmente afetados por isso. Para alguns indígenas isso ainda é muito pior do que ter suas casas incendiadas. O coletivo para eles é mais importante. A floresta e os rios são mais importantes do que qualquer outra coisa. Eles sofrem muito.

FOTÓGRAFO: Nem a presença das Forças Nacionais inibem os garimpeiros. Eles continuam cometendo atos de violência. Ameaçam. A lista de crimes é grande: incêndios criminosos, associação criminosa, exploração ilegal de matéria-prima da União, crime contra o meio-ambiente e por aí vai.

CÂMERA: E não é só a questão dos garimpeiros e outros com nossos irmãos indígenas. Há invasão irregular de terras públicas. E não é só pelo pessoal da agropecuária. Há outros negócios envolvidos. E isso você não me usa. Não tira fotos.

FOTÓGRAFO: O que eu lamento é que essas práticas podem prejudicar muito nosso país. Nos acordos internacionais, no mercado internacional. Podem fechar mercado para nossos produtos. Aqui no Amazonas temos áreas de reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável. Isso garante a conservação da biodiversidade e do patrimônio natural. Mas poucas pessoas parecem saber disso.

CÂMERA: Pois é, vocês precisam melhorar a informação sobre a legislação que rege a questão do uso da terra e do uso de recursos naturais. Você que é fotógrafo não deixa de ser um comunicador. A sociedade precisa ser melhor informada sobre a questão ambiental. Isso é muito sério e importante.

FOTÓGRAFO: Muito importante. A questão da terra e seus recursos naturais. Mas há também os índios urbanos. Em Manaus há muitos, inclusive ocupando áreas irregulares. Bem ou mal há políticas programadas para os indígenas aldeados. Há as terras demarcadas. E os índios de Manaus? Precisam implementar também processos demarcatórios para os índios urbanos. Eles estão esquecidos. Isso também é preocupante. O cacique me explicava que a questão da distinção entre indígenas aldeados e os que moram na cidade é uma divisão criada pelo homem branco. O índio sempre esteve nas cidades. Segundo o cacique, a presença de indígenas nos centros urbanos sempre existiu. Ele explica que são as cidades que chegaram aos indígenas. Ele advoga que os indígenas que moram nas cidades precisam ser reconhecidos como indígenas na cidade.

CÂMERA: Claro. Como máquina que registra tudo e todos, vejo como de primordial importância que esses índios urbanos mantenham suas tradições e seus costumes. Quando as administrações do branco não reconhecem a identidade dos indígenas, também não reconhecem o seu direito ao território. E mais, os índios têm seu direito negado quanto a educação e saúde diferenciadas. Até na hora da morte. Enterram indígenas como “pardos”. Não são pardos. São indígenas. Tem etnia própria. Mudando de assunto, penso que o artesanato é uma grande saída para eles. Adoro quando sou usada para tirar fotos de artesanato. Sou fã de artesanato. Os produzidos pelos indígenas são uma beleza. Precisam realizar eventos de apoio. Durante a pandemia de covid ficou tudo suspenso. Tanto a venda de artesanato quanto a realização de eventos.

FOTÓGRAFO: Sem esquecer que o artesanato fomenta a indústria do turismo. A chamada indústria sem chaminé. O fomento a esses eventos e ao turismo gera renda. E eles precisam disso para sobreviver com dignidade. O tal sistema econômico não pode e não deve excluir os índios. Nem os ribeirinhos também. Os índios não podem ser excluídos. Eles fazem parte da cadeia. Além da produção de artesanato, os índios trabalham a piaçava, a piscicultura.

CÂMERA: E o açaí. O açaí nativo, a castanha e a farinha d’água fazem parte de uma cadeia produtiva que para eles é meio invisível. Quando esses produtos chegam a Manaus ou a outros centros, quem acaba levando vantagem é o atravessador. O produto fica onerado e os indígenas, com pouco lucro. É tudo muito cruel e injusto.

FOTÓGRAFO: É preciso apoio para que eles se organizem. O que não falta é mercado para esses produtos. Não só no Brasil como no exterior. Se faz necessário e urgente a organização e potencialização dessas atividades. Outra coisa importante é a certificação. Os produtos precisam ser certificados como produtos da floresta. O índio prioriza a floresta. O índio prioriza a relação com o meio ambiente. Nunca se deve esquecer que a terra é o sagrado. A terra é o mais sagrado de tudo. Para eles a terra é o princípio de tudo.

CÂMERA: É a eterna luta pela terra. Mas eles lutam também por educação e saúde. Ficaram vulneráveis na pandemia. Muitos não índios consideram os índios como um nativo não civilizado. Há muito preconceito. Eles sofrem isso. Já registrei isso em fotos. Eles gostam de aprender com os brancos. Mas os brancos têm muito o que aprender com os indígenas. Suas histórias, suas tradições, seus costumes. Eles ficam extremamente ofendidos, e com razão, quando são taxados como atraso para o desenvolvimento. Geralmente são pessoas que não os conhecem. O respeito só existe quando há conhecimento.

FOTÓGRAFO: Tem ainda a questão do isolamento. Eu sempre quis fotografar por lá. Mas temos que respeitar o isolamento.

CÂMERA: Você tem consciência e não vai lá. Mas os invasores – garimpeiros, madeireiros, caçadores já estão na área. Parece até que são incentivados.

FOTÓGRAFO: Estou me referindo à terra do Vale do Javari, na fronteira do Brasil com o Peru. É a região onde estão concentrados. Trata-se da maior concentração de povos isolados do mundo.

CÂMERA: É de lá mesmo que estou falando. A situação ficou mais grave durante a pandemia. Houve um total descaso com a integridade territorial e a segurança sanitária desses povos em isolamento durante a pandemia de covid-19. Uma lástima. Um crime.

FOTÓGRAFO: Outro dia li que uma tribo do Purus sofreu forte queda populacional causada pelo sarampo. Isso ainda no século 19. Veja você, no período áureo de extração da borracha. Muito triste tudo isso.

CÂMERA: Com o ciclo da borracha foram intensificados os contatos com os europeus. Os indígenas foram atraídos para a aquisição de ferramentas e outros itens. Nessa época, eles faziam saques nos seringais, nas chamadas “colocações” e acampamentos de seringueiros.

FOTÓGRAFO: É, mas cada povo manteve uma experiência particular de interação com os extrativistas, com os seringueiros e seringalistas, assim como outros habitantes que se instalaram na região.

CÂMERA: Eu conversava com uma índia velha que me contou uma história impressionante. A narração se inicia quando uma esposa jovem tem relação com uma cobra sucuri. A moça levava caiçuma para o seu marido. Se perdeu na floresta e foi abusada por uma cobra sucuri. Incrível essa história. Daí nasceu uma criança-cobra. Foi um susto para todos.  Então o avô da criança resolveu queimar o bebê. Essa tragédia causou um grande dilúvio. E pasmem! Só sobreviveu a mãe e sua irmã. Elas treparam num pé de árvore. Após o dilúvio, as irmãs desceram e começaram a andar pelo mundo, procurando os seus parentes.

FOTÓGRAFO: Vamos descansar, amanhã tirarei as últimas fotos e partiremos. Tenho muito o que fazer na cidade. Minha família está reclamando das minhas ausências.

CÂMERA: Você é que sabe. Estou sempre com você. Sou sua câmera, sua consciência, sua amiga. Vamos relaxar.

 

(Fim do segundo ato.)

Continua no próximo sábado...