Amigos do Fingidor

quinta-feira, 21 de abril de 2022

A poesia é necessária?


ao operário

                                  Mailson Furtado

 

era manhã

ainda sem sol

(culpa duma nuvem

           intrometida)

 

duas voltas na chave

cinco quarteirões ao norte

pé-ante-pé

passo-ante-passo

a rua do tamanho

          do depois

e ele (sem ele)

já cedo – cansaço

 

o ônibus inerte o embrulha e sacode

noutra rua sem-pai-nem-mãe

 

o patrão sempre ao braço

palitando entre dois ponteiros

e ele sei lá

: num ‘tá e não ‘tá

num ser e não ser

ora só pernas

ora sem olhos

ora a mochila

ora só a hora de chegar

e vai

 

repete bom-dias

repete o café

repete o anteontem

(que tanto faz ser amanhã)

repete o que nunca fez

sempre no mesmo horário

    lotado doutros ausentes

e

vai

 

no ir do mesmo caminho

ele às voltas

            vai

futrica o mesmo martelar

das oito nove dez

                      às seis

do mesmo do mesmo

do mesmo mês

já setembro

 

outra vez sem férias

outra vez com as mesmas coisas

outra vez sem outras coisas

outra vez com tantas coisas

e já sem ele

 

sem saber quem

mas pra que

era

 

e vai o dia

que é um

           nenhum

           e outros seis

a tropeçar no domingo

que é um acidente

 

e vai

voltas e idas sem mais

voltas e idas nem mais

nem ele

 

(por treze dias

ficou sem existir

 

            : seus registros em documentos a provar sua

            vida numa tarde foram deixados num assalto

         

          sem números

          não tinha nome

          não era gente

          não tinha parentes

          não tinha

                 nem ele –

         

          o agora ou depois

          o mesmo valor)

  

sem sol

o relógio já cochila pramanhã

 

: um trago no bar

  um cigarro na esquina

  o vale-transporte a valer

               a próxima parada

já sua casa

 

cinco quarteirões ao sul

duas voltas na chave

 

era noite

com lua

e ele não viu

(culpa das mesmas coisas de sempre

daquilo que não muda)