Zemaria Pinto
Sobre clichês e parasitas. É um clichê afirmar que Machado de Assis foi um
escritor completo. E quando se diz isso pensa-se no lado mais visível de sua
obra, de contista e romancista. Para que
o chavão seja entendido em sua totalidade seria preciso focar o lado menos visível, não
só para o público, mas também para os exegetas: o cronista, o crítico
e ensaísta, o tradutor, o dramaturgo
e, sobretudo, o poeta, do qual dos ocuparemos mais
tarde.
Numa época
em que
ser escritor era mais uma questão de prestígio social que de sobrevivência, Machado
– e também Olavo Bilac e o quase esquecido Coelho
Neto – trava
uma guerra pela
profissionalização da sua classe.
Impõe-se como autor,
tem o reconhecimento de seus pares e
dos leitores ainda
muito jovem,
negocia contratos com
seu editor
e se assenhoreia com voracidade
de todos os gêneros
literários. Além
disso, participa intensamente da vida literária
da capital do país,
em agremiações
que resultariam na fundação
da Academia Brasileira
de Letras, da qual
ele se torna
o primeiro presidente.
Machado é um
intelectual orgânico,
tanto no sentido
gramsciano, com relação
a sua classe
– a dos escritores –, quanto numa acepção
biológica: ele vivia de e para
escrever. Escrever era a sua vida.
Machado de Assis dignificou a profissão de escritor,
embora não
tenha conseguido viver apenas
dela. Mas o objetivo não era só a sobrevivência.
Deu-lhe responsabilidades e uma aura de circunspecção
e sobriedade, que
não deveriam mais
admitir o diletante,
o amador, o playboy das letras – ainda tão comuns, hoje. Depois de
Machado, esses
parasitas da arte
deveriam recolher-se aos seus mundinhos
de elogios fáceis e trocas
de favores. Cem
anos depois
de Machado, entretanto,
o provincianismo ainda impera no uso da literatura, da má literatura, como mero símbolo de
status
social.
Sobre mistérios e mitos biográficos. Quase nada
se sabe sobre Joaquim Maria Machado de Assis, nascido a 21 de junho
de 1839, de pai filho de escravos
libertos e mãe
açoriana, do período
que vai do seu
nascimento até o início amador da
militância na imprensa, em 1855 – como aprendiz de tipógrafo e publicando
poemas esparsos –, nem mesmo sobre as escolas
que possivelmente frequentou. Certo mesmo foi
o aprendizado da morte:
aos seis anos
perdeu a irmã, dois anos
mais nova que ele;
aos dez perdeu a mãe.
Sobre o pai,
correm várias histórias de morte precoce, mas há evidências
de que isso
não aconteceu antes
dos 16 anos do jovem
Joaquim Maria, época em
que ele
começava a publicar os primeiros
poemas, já
com o nome
que o tornou famoso.
Alguns “mitos”
biográficos não se sustentaram no tempo. Um deles,
sobre o seu
“professor de francês”,
que seria um
padeiro de uma padaria
que jamais
existiu em tempo
algum em
todo o Rio de
Janeiro. A verdade
é que aos 20 anos
ele já
dominava o francês não
apenas para ler, mas também para traduzir.
Outro mito
refere-se ao seu “professor
de latim”, o padre
Silveira Sarmento, a quem Machado
dedica, em 1858, o poema
“A morte no Calvário”.
Nem Machado
nem o padre
jamais deram publicidade
dessa relação. A educação
esmerada de Machado de Assis é um mistério, e
provavelmente continuará a sê-lo para sempre.
O autodidata
revela-se no ensaio “O passado, o presente e o futuro
da literatura”, de 1958, onde
faz uma análise minuciosa
da literatura brasileira
até então,
revelando profundo conhecimento
da matéria. O artigo
é polêmico. Referindo-se às “três formas literárias essenciais
– o romance, o drama
e a poesia”, ele
diz que “ninguém
que for imparcial
afirmará a existência das duas primeiras
entre nós”.
Mais adiante,
“passando ao drama, ao teatro, é palpável
que a esse
respeito somos o povo
mais parvo
e pobretão entre
as nações cultas.” Aos
19 anos...
Com relação
ao romance, é importante
lembrar que
Alencar estreara apenas 2 anos antes, com Cinco
Minutos, e, no ano
seguinte, 1857, publicara sua primeira obra de peso, O
Guarani. Machado
tinha mesmo
razão: em
1858, tirando Alencar, que apenas despontava, e Manuel Antônio de Almeida, que publicara Memórias
de um Sargento
de Milícias, em 1854, mas fora
ignorado, o romance brasileiro
não existia – A Moreninha, de
1844, e outros de Joaquim Manuel de
Macedo, não tinham nenhuma relevância.
Profissionalmente, começa
a publicar crônicas
e crítica literária
aos 21 anos, em
1860. Publica o primeiro livro
– Queda que
as mulheres têm para
os tolos
– no ano seguinte.
Esse primeiro
livro, quando
não é ignorado pelos
anotadores biográficos, é relacionado como
dramaturgia. Trata-se, entretanto, de um
pequeno ensaio,
que poderia
ter sido dividido em
três ou
quatro crônicas,
sem prejuízo para o resultado final, que busca menos a reflexão e mais
a graça.
Não posso deixar
de observar que
a epilepsia – apontada muitas vezes
como causa da
sua extraordinária
capacidade produtiva
– só se manifesta
em 1872, quando
Machado, aos 33 anos,
já está casado
com Carolina e leva
uma pacata vida
doméstica. O jovem
Machado de Assis, Machadinho para os companheiros
de boêmia, bem
que aproveitou a juventude,
como bom
romântico – e, antes da doença que o acompanharia até o fim, escreveu muito: crônicas,
críticas, ensaios,
comédias, um
livro de contos
e dois de poemas.
Não
era pouco
para uma época em que a expectativa de vida não
passava dos 40 anos.
Em síntese,
entre 1858, quando
começa a publicar,
de forma amadora, suas
crônicas, críticas
e ensaios, e 1908, quando
publica seu último
livro, Memorial de Aires, Machado
de Assis escreve a crônica da cidade do Rio de Janeiro, capital
do império e da república, centro
cosmopolita de um Brasil rural. Falece a 29 de setembro de 1908.
Os 69 anos de vida de
Machado de Assis têm como pano de fundo histórico
alguns dos momentos
mais significativos
da história brasileira,
como a Guerra
do Paraguai, a luta pela
abolição da escravatura,
a proclamação da República e a revolta de Canudos.
A nenhum desses assuntos
Machado foi indiferente,
embora sua
participação tenha se limitado ao ato de escrever, sem participar diretamente dos movimentos
de rua. Esse
retraimento, talvez motivado pelos problemas
de saúde, criou o “mito”
do escritor alienado,
que só
pode ser sustentado pela
má fé ou
pela ignorância
da obra machadiana.
Do ponto
de vista estético,
Machado de Assis viveu o auge e a decadência
do Romantismo. Bem
informado, ele sabia que, especialmente
na França, o Romantismo começara a morrer
quando mal
nascia no Brasil. Consciente disso, Machado é um romântico em
crise. Por
outro lado,
o nascente Realismo
não desperta nele grande
entusiasmo. A poesia
machadiana também
reflete a crise romântica: ele parece procurar, nos dois primeiros livros
de poemas, uma forma
nova de expressão.
Essa fratura leva-o a criar,
a partir de Memórias
póstumas de Brás Cubas, uma nova maneira de
escrever, renegando o Romantismo,
sem aderir ao
Realismo. Deixa
de ser epígono para tornar-se mestre.