Amigos do Fingidor

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

O lado avesso de Machado de Assis 1/5


Zemaria Pinto[1]

 

 

Sobre clichês e parasitas. É um clichê afirmar que Machado de Assis foi um escritor completo. E quando se diz isso pensa-se no lado mais visível de sua obra, de contista e romancista. Para que o chavão seja entendido em sua totalidade seria preciso focar o lado menos visível, não para o público, mas também para os exegetas: o cronista, o crítico e ensaísta, o tradutor, o dramaturgo e, sobretudo, o poeta, do qual dos ocuparemos mais tarde.

Numa época em que ser escritor era mais uma questão de prestígio social que de sobrevivência, Machado – e também Olavo Bilac e o quase esquecido Coelho Netotrava uma guerra pela profissionalização da sua classe. Impõe-se como autor, tem o reconhecimento de seus pares e dos leitores ainda muito jovem, negocia contratos com seu editor e se assenhoreia com voracidade de todos os gêneros literários. Além disso, participa intensamente da vida literária da capital do país, em agremiações que resultariam na fundação da Academia Brasileira de Letras, da qual ele se torna o primeiro presidente. Machado é um intelectual orgânico, tanto no sentido gramsciano, com relação a sua classe – a dos escritores –, quanto numa acepção biológica: ele vivia de e para escrever. Escrever era a sua vida.

Machado de Assis dignificou a profissão de escritor, embora não tenha conseguido viver apenas dela. Mas o objetivo não era a sobrevivência. Deu-lhe responsabilidades e uma aura de circunspecção e sobriedade, que não deveriam mais admitir o diletante, o amador, o playboy das letrasainda tão comuns, hoje. Depois de Machado, esses parasitas da arte deveriam recolher-se aos seus mundinhos de elogios fáceis e trocas de favores. Cem anos depois de Machado, entretanto, o provincianismo ainda impera no uso da literatura, da má literatura, como mero símbolo de status social.  

 

Sobre mistérios e mitos biográficos. Quase nada se sabe sobre Joaquim Maria Machado de Assis, nascido a 21 de junho de 1839, de pai filho de escravos libertos e mãe açoriana, do período que vai do seu nascimento até o início amador da militância na imprensa, em 1855 – como aprendiz de tipógrafo e publicando poemas esparsos –, nem mesmo sobre as escolas que possivelmente frequentou. Certo mesmo foi o aprendizado da morte: aos seis anos perdeu a irmã, dois anos mais nova que ele; aos dez perdeu a mãe. Sobre o pai, correm várias histórias de morte precoce, masevidências de que isso não aconteceu antes dos 16 anos do jovem Joaquim Maria, época em que ele começava a publicar os primeiros poemas, com o nome que o tornou famoso.

Algunsmitos” biográficos não se sustentaram no tempo. Um deles, sobre o seuprofessor de francês”, que seria um padeiro de uma padaria que jamais existiu em tempo algum em todo o Rio de Janeiro. A verdade é que aos 20 anos ele dominava o francês não apenas para ler, mas também para traduzir. Outro mito refere-se ao seuprofessor de latim”, o padre Silveira Sarmento, a quem Machado dedica, em 1858, o poema “A morte no Calvário”. Nem Machado nem o padre jamais deram publicidade dessa relação. A educação esmerada de Machado de Assis é um mistério, e provavelmente continuará a sê-lo para sempre.

O autodidata revela-se no ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura”, de 1958, onde faz uma análise minuciosa da literatura brasileira até então, revelando profundo conhecimento da matéria. O artigo é polêmico. Referindo-se às “três formas literárias essenciais – o romance, o drama e a poesia”, ele diz queninguém que for imparcial afirmará a existência das duas primeiras entre nós”. Mais adiante, “passando ao drama, ao teatro, é palpável que a esse respeito somos o povo mais parvo e pobretão entre as nações cultas.”[2] Aos 19 anos...

Com relação ao romance, é importante lembrar que Alencar estreara apenas 2 anos antes, com Cinco Minutos, e, no ano seguinte, 1857, publicara sua primeira obra de peso, O Guarani. Machado tinha mesmo razão: em 1858, tirando Alencar, que apenas despontava, e Manuel Antônio de Almeida, que publicara Memórias de um Sargento de Milícias, em 1854, mas fora ignorado, o romance brasileiro não existia – A Moreninha, de 1844, e outros de Joaquim Manuel de Macedo, não tinham nenhuma relevância.

Profissionalmente, começa a publicar crônicas e crítica literária aos 21 anos, em 1860. Publica o primeiro livroQueda que as mulheres têm para os tolos[3] – no ano seguinte. Esse primeiro livro, quando não é ignorado pelos anotadores biográficos, é relacionado como dramaturgia. Trata-se, entretanto, de um pequeno ensaio, que poderia ter sido dividido em três ou quatro crônicas, sem prejuízo para o resultado final, que busca menos a reflexão e mais a graça.

Não posso deixar de observar que a epilepsia – apontada muitas vezes como causa da sua extraordinária capacidade produtiva se manifesta em 1872, quando Machado, aos 33 anos, está casado com Carolina e leva uma pacata vida doméstica. O jovem Machado de Assis, Machadinho para os companheiros de boêmia, bem que aproveitou a juventude, como bom romântico – e, antes da doença que o acompanharia até o fim, escreveu muito: crônicas, críticas, ensaios, comédias, um livro de contos e dois de poemas.  Não era pouco para uma época em que a expectativa de vida não passava dos 40 anos.

Em síntese, entre 1858, quando começa a publicar, de forma amadora, suas crônicas, críticas e ensaios, e 1908, quando publica seu último livro, Memorial de Aires, Machado de Assis escreve a crônica da cidade do Rio de Janeiro, capital do império e da república, centro cosmopolita de um Brasil rural. Falece a 29 de setembro de 1908.

Os 69 anos de vida de Machado de Assis têm como pano de fundo histórico alguns dos momentos mais significativos da história brasileira, como a Guerra do Paraguai, a luta pela abolição da escravatura, a proclamação da República e a revolta de Canudos. A nenhum desses assuntos Machado foi indiferente, embora sua participação tenha se limitado ao ato de escrever, sem participar diretamente dos movimentos de rua. Esse retraimento, talvez motivado pelos problemas de saúde, criou o “mito” do escritor alienado, que pode ser sustentado pela ou pela ignorância da obra machadiana.

Do ponto de vista estético, Machado de Assis viveu o auge e a decadência do Romantismo. Bem informado, ele sabia que, especialmente na França, o Romantismo começara a morrer quando mal nascia no Brasil. Consciente disso, Machado é um romântico em crise. Por outro lado, o nascente Realismo não desperta nele grande entusiasmo. A poesia machadiana também reflete a crise romântica: ele parece procurar, nos dois primeiros livros de poemas, uma forma nova de expressão. Essa fratura leva-o a criar, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, uma nova maneira de escrever, renegando o Romantismo, sem aderir ao Realismo. Deixa de ser epígono para tornar-se mestre

     

[1] Do livro A história como metáfora e outros ensaios amorosos. Manaus: Reggo/AAL, 2018. p. 51-70.

[2] Crítica & Variedades, p. 7-8.

[3] Crítica & Variedades, p. 208-219.


Este ensaio será postado em cinco partes, todas as sextas-feiras, até 3 de março.