Amigos do Fingidor

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

O lado avesso de Machado de Assis 2/5


Zemaria Pinto

 

O cronista. Ainda um amador, Machado de Assis começa a publicar regularmente na segunda metade de 1859 a seçãoAquarelas”, no jornal O espelho. É dessa época um texto bastante expressivo, intitulado “A reforma pelo jornal”, onde, numa linguagem vibrante, ele analisa o papel do jornal na democratização das relações humanas:

 

Houve uma cousa que fez tremer as aristocracias, mais do que os movimentos populares; foi o jornal.

(...) Graças a Deus, se há alguma cousa a esperar é das inteligências proletárias, das classes ínfimas; das superiores, não.

(...) Eu não creio no destino individual, mas aceito o destino coletivo da humanidade. Há um polo atraente e fases a atravessar. – Cumpre vencer o caminho a todo custo; no fimsempre uma tenda para descansar, e uma relva para dormir.[1]

 

É inadmissível que esse texto, pregando abertamente a revolta (cumpre vencer o caminho a todo custo!), tenha saído da pena de um alienado.

A partir do ano seguinte, ingressa no Diário do Rio de Janeiro, de Saldanha Marinho, onde trabalha como repórter parlamentar e crítico teatral, além de manter uma coluna semanal intitulada “Comentários da Semana”. Num longo texto com feição de crônica intitulado “O Velho Senado”, escrito na maturidade, publicado em Páginas Recolhidas (1899), Machado relembra os tempos de repórter do Diário do Rio e sua convivência com amigos jornalistas, como Quintino Bocaiúva e Bernardo Guimarães, e com os senadores, liberais e conservadores, que forjaram a história da capital e do segundo reinado, como o plebeu Joaquim Nabuco e os nobres Visconde de Ouro Preto, Duque de Caxias e Barão do Rio Branco.

Tendo escrito mais de setecentas crônicasentre 1858 e 1900 –, Machado publicou em livro apenas seis delas, em Páginas Recolhidas. Essas seis crônicas antologiadas pelo próprio autor haviam sido publicadas na Gazeta de Notícias, entre 1892 e 1894. São textos com um viés literário que não se encontrará em boa parte das crônicas de Machado, pois, ordinariamente, são textos escritos sob o calor dos acontecimentos, fazendo parte de um jogo que conjuga o informar com o formar opinião. Em Machado, contudo, esse jogo é feito com humor e ironia, um calculado amargor e alguma melancolia. A crônica literária brasileiraum gênero que ultrapassa as definições corriqueiras de “registro cronológico dos fatos” – começa exatamente com Machado de Assis, para se espraiar em Rubem Braga, Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade, para ficar em três mestres incontestes.

Embora possam ser encontradas com títulos diferentes, relaciono a seguir coletâneas de crônicas publicadas postumamente:

 

 . Crítica & Variedade – publicações esparsas, entre 1859 e 1904;

 . Bons Dias! & Notas Semanais – publicadas em 1878 e 1888-1889;

 . Balas de Estalo & Crítica – publicadas na Gazeta de Notícias, entre 1883 e 1886;

 . História de Quinze Dias – publicadas na revista Ilustração Brasileira, entre julho de 1876 e abril de 1878;

 . A Semana – publicadas na Gazeta de Notícias, entre 1892 e 1900.

 

Voltemos àquelas seis crônicas citadas: não diria que são as melhores, mas são certamente representativas da obra de Machado de Assis – e, não à toa, foram escolhidas pelo próprio. Quatro delas reportam-se a matérias de jornais, que nem sempre sabemos se são verdadeiras ou inventadas. Vejamos cada uma delas.

“Vae Soli”:[2] o título, em latim, é uma citação do Eclesiastes (4,10): “Pobre daquele que está : se cair não tem quem o levante”; o versículo seguinte arremata: “Além disso, se dois dormirem juntos, aquecer-se-ão mutuamente; mas um como há de aquecer-se?”.[3]

 

Um dia desta semana, farto de vendavais, naufrágios, boatos, mentiras, polêmicas, farto de ver como se descompõem os homens, acionistas e diretores, importadores e industriais, farto de mim, de ti, de todos, de um tumulto sem vida, de um silêncio sem quietação, peguei de uma página de anúncios, e disse comigo:

“Eia, passemos em revista as procuras e ofertas, caixeiros desempregados, pianos, magnésias, sabonetes, oficiais de barbeiro, casas para alugar, amas-de-leite, cobradores, coqueluche, hipotecas, professores, tosses crônicas...”

E o meu espírito, estendendo e juntando as mãos e os braços, como fazem os nadadores, que caem do alto, mergulhou por uma coluna abaixo. Quando voltou à tona, trazia entre os dedos esta pérola:

Uma viúva interessante, distinta, de boa família e independente de meios, deseja encontrar por esposo um homem de meia-idade, sério, instruído, e também com meios de vida, que esteja como ela cansado de viver ; resposta por carta ao escritório desta folha, com as iniciais M.R...., anunciando, a fim de ser procurada essa carta.

 

Entre citações bíblicas, históricas, filosóficas e literárias, Machado de Assis, em duas páginas e meia, escreve um tratado sobre a solidão. Uma das citações refere-se a um capitão da guarda de Nero – “rico, interessante e aborrecido, como tu” – que se aconselha com o filósofo estoico Sêneca sobre a cura para o tédio que sentia. Dizia o capitão ao filósofo: “não é a tempestade que me aflige, é o enjoo do mar”. Machado faz um paralelo entre a viúva e o capitão, para concluir: “Viúva minha, o que tu queres realmente não é um marido, é um remédio contra o enjoo. (...) Queres menos um companheiro que uma companhia.” E conclui:

 

Mas, se ele te sair o que queres, que grande prêmio de loteria! Junto à amurada do navio, vendo a fúria do mar e dos ventos, tu ouvirás muitas cousas sérias e graciosas a um tempo, seguindo com os olhos a fúria dos ventos e o tumulto das ondas livre, do enjôo, como pedia aquele capitão de Nero, e por diferente regímen do que lhe aconselhou o filósofo. E a tua conclusão será como a tua premissa; em caso de tédio, antes um marido que nada.

 

A crônicaSalteadores da Tessália”[4] é de uma atualidade impressionante: comenta a notícia sobre a prisão de uma quadrilha de deputados. O estilo é inconfundível, desenvolvendo-se, tal como na anterior, num entrançado de altas referências e grande densidade poética, além daquele calculado amargor, tendente à melancolia.

 

Tudo isto cansa, tudo isto exaure. Este sol é o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma palavra antiga, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céu azul e embruscado, as estrelas e as nuvens, o galo da madrugada, é tudo a mesma cousa. vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete médico, este vende, aquele compra, aquele outro empresta, enquanto a chuva cai ou não cai, e o vento sopre ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva. Tudo isto cansa, tudo isto exaure.

Tal era a reflexão que eu fazia comigo, quando me trouxeram os jornais. Que me diriam eles que não fosse velho? A guerra é velha, quase tão velha como a paz. Os próprios diários são decrépitos. A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dele, dia por dia até o sétimo em que o Senhor descansou. O cronista bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor que não foi outra senão o sentimento da caducidade da obra.

 

A terceira crônica, “O sermão do Diabo”,[5] vale-se de uma obscura citação de Santo Agostinho – “a igreja do Diabo imita a igreja de Deus” – para parodiar nada menos que o Sermão da Montanha:

 

1º – E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos. (...)

13º – Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos: Comei-vos uns aos outros; melhor é comer que ser comido; o lombo alheio é muito mais nutritivo que o próprio. (...)

15º – Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irmão anda meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e tira-lhe o que ele ainda levar consigo. (...)

18º – Não façais as vossas obras diante de pessoas que possam ir contá-lo à polícia. (...)

30º – Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao homem sábio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrário do homem sem consideração, que edificou sobre a areia, e fica a ver navios...

 

“A cena do cemitério[6] parodia uma das cenas mais dramáticas do Hamlet, de Shakespeare, o enterro de Ofélia, comentando, em clima de pesadelo, a crescente especulação financeira. “Canção de Piratas”,[7] de julho de 1894, alude a Canudos, e à notícia de que Antônio Conselheiro reunira 2.000 homensperfeitamente armados”. O tom é de puro sarcasmo: Machado vibra com os rebelados e compara-os com os piratas cantados por seu mestre Victor Hugo.

 

Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século. (...)

Poetas de 1894, tendes matéria nova e fecunda. Recordai vossos pais; cantai como Hugo a canção dos piratas.

 

Machado renega a própria rotina e se delicia com o rompante romântico dos novos heróis, que “sacudiram as sandálias à porta da civilização e saíram à vida livre”. Era a redenção da poesia que definhava no individualismo parnasiano: um motivo épico, enfim, explodia no sertão brasileiro. Não se poderia pretender nada mais original. Parece que Euclides da Cunha levou a sério os conselhos de seu amigo Machado.

O último texto, “Garnier”,[8] faz o necrológio do editor que foi amado e odiado pelos escritores do seu tempo. Machado descreve com uma compaixão impressionista a avareza do editor, que morreu sem se dar tempo, pela entrega doentia ao trabalho, de desfrutar a riqueza acumulada.

 

Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as suas labutações? O gosto do trabalho, um gosto que se transformou em pena, porque no dia em que devera libertar-se dele, não pôde mais; o instrumento da riqueza era também o do castigo. Esta é uma das misericórdias da Divina Natureza. Não importa: laboremus. Valha sequer a memória, ainda que perdida nas páginas dos dicionários biográficos. Perdure a notícia, ao menos, de alguém que neste país novo ocupou a vida inteira em criar uma indústria liberal, ganhar alguns milhares de contos de réis, para ir afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perpétua. Perpétua!

 

Há muitas outras crônicas que poderiam fazer parte desse conjunto antológico. Acrescento mais duas, pelo que elas nos ajudam a compreender melhor a própria obra machadiana. “Filosofia de um par de botas[9] (1878), onde se reproduz o diálogo entre um velho e abandonado par de botas, a relembrar sua atribulada passagem pelo mundo, revela a “influência” do cronista no romancista, especialmente em Memórias póstumas de Brás Cubas. Outro texto exemplar é “Elogio da Vaidade”[10] (1878), onde a própria discursa opondo-se à Modéstia e justificando porque ela, a Vaidade, é a principal virtude entre os homens. Essa crônica ilustra a classificação que Ivan Teixeira usa para Machado de Assis: “um crítico da cultura[11] – dos costumes, do comportamento. É um exemplo da abrangência crítica de Machado de Assis. Ninguém estava isento de sua pena ferina: nem mesmo Jesus Cristo ou Shakespeare. Concluindo o discurso, a Vaidade percebe que a plateia não concorda com o que acabara de expor:

 

Querem ver que perdi toda a minha retórica, e que ao cabo da pregação, deixo um auditório de relapsos? Céus! Dar-se-á caso que a minha rival vos arrebatasse outra vez? Todos o dirão ao ver a cara com que me escuta este cavalheiro; ao ver o desdém do leque daquela matrona. Uma levanta os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figa; outro abana tristemente a cabeça; e todas, todas as pálpebras parecem baixar, movidas por um sentimento único. Percebo, percebo! Tendes a volúpia suprema da vaidade, que é a vaidade da modéstia.



[1] Crítica & Variedades, p. 205-207.

[2] Páginas Recolhidas, p. 133-135.

[3] Bíblia Sagrada, p. 790.

[4] Páginas Recolhidas, p. 136-139.

[5] Páginas Recolhidas, p. 140-142.

[6] Páginas Recolhidas, p. 143-146.

[7] Páginas Recolhidas, p. 147-149.

[8] Páginas Recolhidas, p. 150-152.

[9] Crítica & Variedades, p. 220-226.

[10] Crítica & Variedades, p. 227-233.

[11] Apresentação de Machado de Assis, p. 196.