Amigos do Fingidor

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O lado avesso de Machado de Assis 3/5

 

Zemaria Pinto

 

O crítico e o ensaísta. Junto os gêneros que por vezes se imbricam e porque o ensaísmo de Machado é essencialmente literário. Entre 1858 e 1878, Machado de Assis foi um dos mais atuantes críticos literários do país. Nesses 20 anos, nada aconteceu na literatura e no teatro brasileiros que fugisse a sua arguta observação. Não à toa, José de Alencar, o maior nome da literatura brasileira de então, classificou-o, em carta aberta, como o “primeiro crítico brasileiro”, ao recomendar-lhe o jovem Castro Alves.[1] Machado entrou inclusive nos meandros da teoria, abordando em originais ensaios alguns temas ainda hoje controversos:

 

. o que é arte

. o que é poesia

. relações entre arte e realidade

. arte e moral

. arte e sociedade

. como diferenciar a arte verdadeira da falsa

. a função social do teatro

. o nacional e o universal na arte

. a decadência do Romantismo

. os limites do Realismo

 

Para Valentim Facioli, apenas 20 anos de exercício crítico não significam uma interrupção prematura na carreira. Antes, Machado desdobra esse talento, a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, dentro de sua própria obra. Sua crítica passa a ser essencialmente “metalinguística, discutindo a si mesma, questionando internamente seu próprio estatuto, discutindo explícita ou implicitamente seu próprio modo de ser.”[2]

Não se pode falar aqui do caráter autodidata do aprendizado de Machado, porque as faculdades de letras ainda não existiam àquela época: todos eram autodidatas. Facioli arrisca ainda o palpite de que a prática da crítica convencional por 20 anos abriu a Machado os caminhos para a revolução que empreendeu em sua escritura a partir de Brás Cubas. É uma hipótese, que, entretanto, não encontra ressonância na obra dramática de Machado: não o seu teatro continuou fraco, como todo o teatro produzido à época continuou sem poder comparar-se com o que se importava da Europa. Nãodúvida de que muitas das ideias do crítico Machado de Assis estão ultrapassadas, mas o todo ainda mantém o interesse pelo que havia de original à época.

Num artigo de 1859, aos 20 anos, ele discorre sobre o tema “O jornal e o livro”.[3] “O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?” Sua conclusão é pela supremacia do jornal, “um sintoma da democracia”, mas o que está subjacente é a velha discussão sobre a morte do livro...

Um dos conceitos fundamentais para entender a obra de Machado de Assis é o “o instinto de nacionalidade”. A ideia aparece no referido artigo “O passado, o presente e o futuro da Literatura”, e vai encontrar sua melhor definição técnica e teórica 15 anos depois, emNotícia da atual Literatura Brasileirainstinto de nacionalidade”.[4]

 

Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e nãonegar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão.

 

Machado não defende, como se pode pensar numa primeira leitura, uma literatura de cunho regionalista, de “cor local”. Sua intenção é muita mais profunda: vai à raiz da formação de um pensamento autenticamente nacional, porque a nação poderá ser pensada a partir de modelos autóctones, absorvendo (antropofagicamente?) a experiência estrangeira, mas sem se submeter a ela.

 

Escusado é dizer a vantagem deste universal acordo. Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto material de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional. Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.

 

Sua atuação na crítica convencionalque avalia as novidades e orienta o leitor – tem um momento que serve à reflexão sobre a própria obra machadiana no contundente comentário[5] sobre O Primo Basílio, de Eça de Queirós, datado de 1878. Machado começa dizendo que, apesar de reconhecer o talento do confrade português, O Crime do Padre Amaro, seu primeiro romance, é uma imitação de Émile Zola, em La faute de l’Abbé Mouret. Claro que Machado não tinha o conceito de intertextualidade, embora não desconhecesse o milenar contaminatio. Aliás, ele usou essa técnica de “apropriaçãoem muitas obras suas, especialmente na segunda fase – e esse é outro conceito fundamental para a compreensão da obra de Machado de Assis.

Relembremos a trama de O Primo Basílio, para melhor entendermos a crítica. Luísa e Basílio, primos e ex-namorados, encontram-se quando, ela casada, ele retorna do Brasil. Jorge, o marido de Luísa, está em viagem de negócios. Durante algumas semanas, o antigo fogo se reaviva e os dois tornam-se amantes. Juliana, criada de Luisa, sabedora do adultério, começa a chantagear a patroa, de posse de algumas cartas de Basílio, que ela furtara. Luisa pensa em fugir com Basílio, que se nega e vai embora de Lisboa. Juliana tira tudo o que pode de Luisa e ainda a humilha trocando de lugar com a patroa. Final: Juliana sofre um aneurisma e morre; Luisa também morre, pelo acúmulo de sofrimento, não sem antes Jorge tomar conhecimento das tais cartas.

A principal crítica de Machado a Eça é quanto ao contorno psicológico dos personagens, sobretudo Luisa, “um caráter negativo, é antes um títere do que uma pessoa moral”. Para ele, Juliana é o personagemmais completo e verdadeiro do livro”. Luisa ama o esposo, mas não sente remorsos ao traí-lo – Machado se pergunta se seria isso produto de uma educação frívola aliada a uma vida ociosa ou de uma vocação sensual. Ele condena o exagero do realismo que quer transmitir a sensação física exata, como condena o excesso de descrições que não se relacionam direta e imediatamente com a trama.

Sobre o que há de “aproveitável” no Realismo, “por que o há, quando não se despenha no excessivo, no tedioso, no obsceno, e até no ridículo”, Machado diz que deve ser “colhido em proveito da imaginação e da arte”, contra o “Romantismo decadente”.

 

Mas sair de um excesso para cair em outro, não é regenerar nada; é trocar o agente da corrupção. (...)

Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética.

 

Dois anos depois desse texto polêmico, Machado começa a publicar, em folhetim, Memórias póstumas de Brás Cubas. Revisara seus conceitos sobre a nova escola? Talvez melhor acreditar que ele usou esse lapso de tempo para burilar um novo jeito de escrever, não importava o nome que tivesse: não era mais Romantismo, mas também não era o Realismo de Zola e Eça, que entre nós tomou a alcunha de Naturalismo. Seria a obra machadiana pós-romântica um Realismo dissimulado?



[1] Machado de Assis, p. 27-28.

[2] Machado de Assis, p. 70.

[3] Balas de estalo & Crítica, p. 125-135.

 

[4] Crítica & Variedades, p. 17-28.

[5] Crítica & Variedades, p. 132-147.