Zemaria Pinto
O crítico e o ensaísta. Junto os gêneros que por vezes se imbricam e porque o
ensaísmo de Machado é essencialmente literário. Entre
1858 e 1878, Machado de Assis foi um dos mais atuantes críticos
literários do país.
Nesses 20 anos, nada
aconteceu na literatura e no teatro
brasileiros que
fugisse a sua arguta
observação. Não
à toa, José de Alencar, o maior nome da literatura brasileira
de então, classificou-o, em carta aberta,
como o “primeiro
crítico brasileiro”,
ao recomendar-lhe o jovem Castro Alves. Machado entrou inclusive nos meandros da
teoria, abordando em originais ensaios alguns temas ainda hoje controversos:
. o que
é arte
. o que
é poesia
. relações entre
arte e realidade
. arte e moral
. arte e sociedade
. como diferenciar
a arte verdadeira da falsa
. a função
social do teatro
. o nacional
e o universal na arte
. a decadência
do Romantismo
. os limites
do Realismo
Para Valentim Facioli, apenas 20 anos
de exercício crítico
não significam uma interrupção
prematura na carreira.
Antes, Machado
desdobra esse talento,
a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas,
dentro de sua
própria obra.
Sua crítica
passa a ser essencialmente “metalinguística, discutindo a si mesma,
questionando internamente seu próprio estatuto, discutindo explícita
ou implicitamente seu
próprio modo
de ser.”
Não se pode falar aqui do caráter autodidata
do aprendizado de Machado,
porque as faculdades
de letras ainda
não existiam àquela época:
todos eram autodidatas.
Facioli arrisca ainda o palpite de que
a prática da crítica
convencional por
20 anos abriu a Machado
os caminhos para
a revolução que
empreendeu em sua
escritura a partir
de Brás Cubas.
É uma hipótese, que,
entretanto, não
encontra ressonância
na obra dramática
de Machado: não
só o seu
teatro continuou fraco,
como todo
o teatro produzido à época
continuou sem poder
comparar-se com o que
se importava da Europa. Não há dúvida de que
muitas das ideias do crítico Machado
de Assis estão ultrapassadas, mas o todo ainda
mantém o interesse pelo
que havia de original
à época.
Num artigo
de 1859, aos 20 anos, ele discorre sobre
o tema “O jornal
e o livro”. “O
jornal matará o livro?
O livro absorverá o jornal?”
Sua conclusão
é pela supremacia
do jornal, “um
sintoma da democracia”,
mas o que
está subjacente é a velha
discussão sobre
a morte do livro...
Um dos conceitos
fundamentais para
entender a obra
de Machado de Assis é o “o instinto de nacionalidade”.
A ideia aparece no referido artigo “O passado,
o presente e o futuro
da Literatura”, e vai encontrar
sua melhor
definição técnica
e teórica 15 anos
depois, em
“Notícia da atual
Literatura Brasileira
– instinto de nacionalidade”.
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo,
como primeiro
traço, certo
instinto de nacionalidade.
Poesia, romance,
todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com
as cores do país,
e não há negar
que semelhante
preocupação é sintoma
de vitalidade e abono
de futuro. As tradições
de Gonçalves Dias, Porto
Alegre e Magalhães são
assim continuadas pela
geração já
feita e pela que ainda agora madruga, como
aqueles continuaram as de José Basílio
da Gama e Santa
Rita Durão.
Machado não
defende, como se pode pensar
numa primeira leitura,
uma literatura de cunho
regionalista, de “cor local”. Sua intenção é muita
mais profunda:
vai à raiz da formação
de um pensamento
autenticamente nacional, porque a nação só poderá ser pensada a partir de modelos autóctones, absorvendo (antropofagicamente?) a experiência estrangeira,
mas sem
se submeter a ela.
Escusado é dizer a vantagem
deste universal acordo.
Interrogando a vida brasileira
e a natureza americana,
prosadores e poetas
acharão ali farto
material de inspiração
e irão dando fisionomia própria ao pensamento
nacional. Esta outra
independência não
tem Sete de Setembro
nem campo
de Ipiranga; não se fará num dia, mas
pausadamente, para sair mais duradoura;
não será obra
de uma geração nem
duas; muitas trabalharão para ela
até perfazê-la de todo.
Sua atuação
na crítica convencional
– que avalia as novidades
e orienta o leitor – tem um momento que serve à reflexão
sobre a própria
obra machadiana
no contundente comentário sobre O Primo Basílio, de Eça de Queirós, datado de 1878. Machado começa dizendo que, apesar de reconhecer o talento
do confrade português,
O Crime do Padre
Amaro, seu primeiro
romance, é uma imitação
de Émile Zola, em La faute de l’Abbé
Mouret. Claro que Machado não tinha o conceito
de intertextualidade, embora não desconhecesse o milenar
contaminatio. Aliás, ele usou essa técnica
de “apropriação” em
muitas obras suas,
especialmente na segunda
fase – e esse
é outro conceito
fundamental para
a compreensão da obra
de Machado de Assis.
Relembremos a trama de O Primo Basílio, para melhor entendermos a crítica.
Luísa e Basílio, primos e ex-namorados,
encontram-se quando, ela já casada, ele retorna do Brasil. Jorge, o marido
de Luísa, está em viagem
de negócios. Durante
algumas semanas, o antigo
fogo se reaviva e os dois
tornam-se amantes. Juliana,
criada de Luisa, sabedora do adultério, começa
a chantagear a patroa, de posse
de algumas cartas de Basílio, que ela furtara.
Luisa pensa em
fugir com
Basílio, que se nega
e vai embora de Lisboa. Juliana tira tudo o que pode
de Luisa e ainda a humilha trocando de lugar com a
patroa. Final: Juliana
sofre um aneurisma
e morre; Luisa também morre, pelo acúmulo de
sofrimento, não sem
antes Jorge tomar
conhecimento das tais
cartas.
A principal
crítica de Machado
a Eça é quanto ao contorno
psicológico dos personagens,
sobretudo Luisa, “um
caráter negativo,
é antes um
títere do que
uma pessoa moral”.
Para ele, Juliana é o personagem
“mais completo
e verdadeiro do livro”.
Luisa ama o esposo,
mas não
sente remorsos ao traí-lo – Machado se pergunta se
seria isso produto
de uma educação frívola
aliada a uma vida
ociosa ou
de uma vocação sensual.
Ele condena o exagero
do realismo que
quer transmitir
a sensação física
exata, como
condena o excesso de descrições que não se relacionam direta
e imediatamente com
a trama.
Sobre o que
há de “aproveitável” no Realismo, “por que o há, quando não se
despenha no excessivo, no tedioso,
no obsceno, e até
no ridículo”, Machado
diz que deve ser
“colhido em proveito
da imaginação e da arte”,
contra o “Romantismo decadente”.
Mas sair
de um excesso
para cair em outro, não é regenerar nada; é trocar o agente da corrupção. (...)
Voltemos os olhos para
a realidade, mas
excluamos o Realismo, assim não
sacrificaremos a verdade estética.
Dois anos
depois desse texto
polêmico, Machado começa
a publicar, em
folhetim, Memórias
póstumas de Brás Cubas. Revisara seus
conceitos sobre
a nova escola?
Talvez melhor
acreditar que
ele usou esse
lapso de tempo
para burilar um novo jeito de escrever, não importava o nome
que tivesse: já
não era
mais Romantismo,
mas também
não era
o Realismo de Zola e Eça, que entre nós tomou
a alcunha de Naturalismo. Seria a obra
machadiana pós-romântica um Realismo dissimulado?