Amigos do Fingidor

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

O lado avesso de Machado de Assis 4/5


Zemaria Pinto

 

O tradutor. A trajetória do escritor profissional se completa com a função de tradutor – nada mais profissional. No entanto, Machado, parece, na maioria das vezes, traduzia por prazer; ou, seria mais moderno dizer, para exercer a capacidade crítica pela via da tradução. Entre as traduções com finalidade profissional são encontradas várias peças de teatro, apenas uma delas publicada: Suplício de uma mulher, de Émile de Girardin e Alexandre Dumas Filho, um dramalhão moralista, bem ao gosto da época. Simplesmente citadas, há diversas, entre elas Os Descontentes, de Racine (século XVII), e O Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais (século XVIII), que inspiraria a famosa ópera de Rossini.  

Machado traduziu poemas de diversos autores: Dante, Shakespeare, Lamartine, La Fontaine, entre outros, mas, sem dúvida, a mais marcante das suas traduções é “O Corvo”,[1] de Edgar Allan Poe, publicado em 1845. Tornado “cult” desde que Baudelaire divulgou sua tradução em prosa, em 1853, The Raven é o marco fundador do SimbolismoAs Flores do Mal, de Baudelaire, viria à luz 4 anos depois. A tradução de Machado de Assis data de 1883, 30 anos depois da de Baudelaire, e 5 anos antes da de Mallarmé, também em prosa.

Havia alguma ousadia naquela tentativa de transpor para o português os versos de Poe, buscando uma “dicçãobrasileira. As estrofes originais de seis versos, 5 longos e um mais condensado, transformaram-se em estrofes de 10 versos, com metros heterométricos: 8, 8, 12, 8, 10, 10, 10, 8, 12 e 8 sílabas. Essa disposição está muito mais próxima do original que as traduções em sonetos de Emílio de Meneses (1917) e de Benedito Lopes (1956). Este chegou ao cúmulo de 22 sonetos pelas 18 estrofes. Em português, além de da tradução pioneira de Machado, lembramos as de Fernando Pessoa (1924), que consegue o “feito” de não citar o nome de Lenora, a quem o poema é dedicado, a de Gondim da Fonseca (1928) e a de Milton Amado (1943) – esta considerada superior, tecnicamente, a todas as demais. Mais recente é a tradução de Alexei Bueno (1983),[2] que opta pela mesma solução métrica de Pessoa: cinco versos longos compostos de dois hemistíquios de sete sílabas; mais o sexto verso, de sete sílabas. Gondim da Fonseca, assim como Milton Amado, preferira compor os versos longos com dois hemistíquios de oito sílabas, mais o sexto também de oito sílabas. Ora, somando as sílabas poéticas em uma estrofe traduzida por Milton Amado, teremos 88 sílabas; em Machado, teremos 94. Não é pelas seis sílabas a mais por estrofe que Machado perde a força da tradução, mas pela pouca tensão poética obtida: o Romantismo esgotara-se; a escola parnasiana dominava o cenário do país, embora ainda não conhecesse seus mais brilhantes expoentes. Em suas 18 estâncias, “O Corvo” é um poema narrativo, que, no original, explora a sonoridade da língua (aliterações, assonâncias, rimas internas e externas) para criar um tom lúgubre, apropriado para a história que se conta.

Exausto de sono, o narrador, quepouco tempo perdera a amada Lenora, ouve uma batida à sua porta; meio adormecido, ele abre a porta e, pedindo desculpas pela demora em atender, somente a noite, e nada mais”. Ele fecha a porta, e quando se retira, com o pensamento em Lenora, ouve nova batida, desta feita na janela; ele pensa que é o barulho do vento, mas abre-a para ter certeza. Um corvo então, entra voando e pousa sobre um busto de Palas Atena. O narrador começa então a inquirir o corvo, que lhe responde “nunca mais!”

 

Ave ou demônio que negrejas!

Profeta, ou o que quer que sejas!

Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!

Regressa ao temporal, regressa

À tua noite, deixa-me comigo.

Vai-te, não fique no meu casto abrigo

Pluma que lembre essa mentira tua.

Tira-me ao peito essas fatais

Garras que abrindo vão a minha dor crua.”

E o Corvo disse: “Nunca mais”.

 

Desde Crisálidas, seu primeiro livro de poemas, datado de 1864, Machado cultivava o poema longo, de caráter narrativo e recitativo, nos moldes de “O Corvo”.



[1] O Almada & Outros Poemas, p. 129-134.

[2] “O Corvo” e suas traduções.