Zemaria Pinto
O tradutor. A trajetória do escritor profissional
se completa com
a função de tradutor – nada mais profissional. No entanto,
Machado, parece, na maioria
das vezes, traduzia por
prazer; ou,
seria mais moderno
dizer, para exercer a capacidade
crítica pela
via da tradução.
Entre as traduções
com finalidade
profissional são
encontradas várias peças de teatro, apenas
uma delas publicada: Suplício de
uma mulher, de Émile de Girardin e
Alexandre Dumas Filho, um dramalhão
moralista, bem ao gosto
da época. Simplesmente
citadas, há diversas, entre elas Os Descontentes, de Racine (século
XVII), e O Barbeiro
de Sevilha, de Beaumarchais (século
XVIII), que inspiraria a famosa ópera de
Rossini.
Machado traduziu poemas
de diversos autores:
Dante, Shakespeare, Lamartine, La Fontaine, entre
outros, mas,
sem dúvida,
a mais marcante
das suas traduções
é “O Corvo”, de
Edgar Allan Poe, publicado em 1845. Tornado “cult” desde
que Baudelaire divulgou sua tradução em prosa, em 1853, The
Raven é o marco fundador
do Simbolismo – As Flores do Mal, de Baudelaire, só
viria à luz 4 anos
depois. A tradução
de Machado de Assis data
de 1883, 30 anos depois
da de Baudelaire, e 5 anos antes da de Mallarmé, também
em prosa.
Havia alguma ousadia naquela tentativa de transpor para o português
os versos de Poe, buscando uma “dicção” brasileira. As
estrofes originais
de seis versos,
5 longos e um
mais condensado, transformaram-se em estrofes de
10 versos, com
metros heterométricos: 8, 8, 12, 8, 10,
10, 10, 8, 12 e 8 sílabas. Essa disposição está muito mais próxima do original
que as traduções
em sonetos
de Emílio de Meneses (1917) e de Benedito Lopes (1956). Este
chegou ao cúmulo de 22 sonetos pelas 18 estrofes.
Em português,
além de da tradução
pioneira de Machado,
lembramos as de Fernando Pessoa (1924), que consegue o “feito”
de não citar
o nome de Lenora, a quem
o poema é dedicado, a de Gondim da
Fonseca (1928) e a de Milton Amado
(1943) – esta considerada superior,
tecnicamente, a todas as demais. Mais recente é
a tradução de Alexei Bueno (1983), que opta pela mesma solução métrica de Pessoa: cinco versos longos compostos
de dois hemistíquios de sete
sílabas; mais
o sexto verso,
de sete sílabas.
Gondim da Fonseca, assim como Milton Amado,
preferira compor os versos
longos com
dois hemistíquios de oito
sílabas, mais
o sexto também
de oito sílabas.
Ora, somando as sílabas
poéticas em
uma estrofe traduzida por Milton Amado,
teremos 88 sílabas; em
Machado, teremos 94. Não é pelas seis
sílabas a mais
por estrofe
que Machado
perde a força da tradução,
mas pela
pouca tensão
poética obtida: o Romantismo
esgotara-se; a escola parnasiana já
dominava o cenário do país, embora ainda não
conhecesse seus mais
brilhantes expoentes.
Em suas
18 estâncias, “O Corvo”
é um poema
narrativo, que, no original,
explora a sonoridade da língua (aliterações, assonâncias,
rimas internas e externas)
para criar um tom lúgubre, apropriado
para a história
que se conta.
Exausto de sono,
o narrador, que há pouco
tempo perdera a amada
Lenora, ouve uma batida à sua porta; meio adormecido,
ele abre a porta
e, já pedindo desculpas
pela demora
em atender,
vê “somente a
noite, e nada
mais”. Ele
fecha a porta,
e quando já
se retira, com
o pensamento em
Lenora, ouve nova batida,
desta feita na janela;
ele pensa
que é o barulho
do vento, mas
abre-a para ter certeza. Um corvo então,
entra voando e pousa sobre um busto de Palas
Atena. O narrador começa então a inquirir o corvo, que só lhe responde
“nunca mais!”
“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite,
deixa-me comigo.
Vai-te, não
fique no meu casto
abrigo
Pluma que lembre essa mentira
tua.
Tira-me ao peito
essas fatais
Garras que
abrindo vão a minha
dor já
crua.”
E o Corvo disse:
“Nunca mais”.
Desde Crisálidas,
seu primeiro livro de poemas, datado de 1864, Machado
cultivava o poema longo,
de caráter narrativo e recitativo, nos
moldes de “O Corvo”.