Amigos do Fingidor

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Amazônia, o paraíso perdido do haicai?

Zemaria Pinto[*]


Talvez me precipite, mas me parece que existe uma tradição de cultivo do haicai entre nós; pelo menos, em Manaus. Quisera poder dizer na Amazônia, esse lugar mítico que esconde tantos mistérios. E a linguagem do mistério é a mesma da poesia. Mas, estaria sendo leviano, porque não conheço outros cultores fora da capital do Amazonas, além dos amigos poetas Eliakin Rufino e Isaac Melo – representando Roraima e Acre.

Essa tradição aproxima-se dos setenta anos – ou, dependendo do ponto de vista, dos cem anos. Mas, um retrospecto da prática do haicai não pode se restringir a um mero “ouvi dizer”. Eu mesmo já fui acusado de afirmar que “tudo começou com o livro Crisântemo de cem pétalas, de Luiz Bacellar e Roberto Evangelista, publicado em 1985”. Essa falácia está registrada em um livro festejado, que eu não cito em detalhes por delicadeza. Afinal, por que a guerra, que só beneficia a quem a provoca, se a paz é um bem para todos?

Mas, devo admitir que, assim como dezenas de meus pares, acreditei piamente, durante muito tempo, que o introdutor do haicai no Amazonas fora mesmo o amigo Luiz Bacellar, mas no livro Frauta de barro, de 1963, onde constam dez haicais, que passaram a doze na segunda edição. E Bacellar jamais negou isso. A partir da terceira edição, os haicais foram eliminados. Autocrítica?

 

O mar está bravo e bate

bate; e, levantando espuma

canta nos rochedos.

(p. 85)

 

Esse pecado coletivo se desfez com o tempo. O livro As horas lentas, de 1930 (2002, 2ª ed.), de Raimundo Monteiro, traz seis tercetos aos quais o autor chamou de “Utas” – uma forma chinesa, adotada no Japão como “waka”, que é simplesmente “poema”. O primeiro waka foi escrito pelo kami (deus) Susanoo, dedicado a sua noiva como presente de bodas. Raimundo Monteiro escrevia como um haijin, mas pensava como um romântico:

 

Morre, em surdina, a toada

De uma viola magoada...

– Penso na minha Amada.

(p. 58)

 

Em 1957, Benjamin Sanches, que se consagraria contista seis anos depois, publicava Argila, onde se destaca uma seção de três poemas, intitulada “Hai-kais”. Sanches bebe na fonte guilhermina:

 

Banhando-se nua,

No rio treme de frio,

A pálida lua.

(p. 125)

 

Volto no tempo, para desfazer mais uma falácia. Muita gente boa credita o ensaísta Samuel Benchimol, merecedor de toda a nossa consideração, como o introdutor do haicai no Amazonas. No livro Nova Terra da Promissão – A Amazônia de Samuel Benchimol (2010), o poeta, ficcionista e ensaísta Elson Farias afirma, com clareza:

 

[Samuel Benchimol] deixou uma coletânea de versos organizada em 1942 e intitulada Versos dos verdes anos, até hoje inédita. (p. 38)

 

Uma outra fonte, que defende ser esse o marco introdutório do haicai no Amazonas, informa que, em livro de 2001, Benchimol assinala que o subtítulo da obra (que seria futuramente citada por Farias) é “Poemas e haicais escritos no período de 1942-1945 (inédito)”. Desconsiderando-se as confusões com as datas, pergunta-se: se era inédito até 2001 – quiçá, 2010 –, quem leu antes, além de uns poucos ungidos por Benchimol? E leu um rascunho, talvez um manuscrito, não uma publicação.

Raimundo Monteiro ou Benjamin Sanches – isso ainda vai dar muita discussão, mas não temos pressa –, o que sabemos com certeza é que não foi o professor Benchimol nem tampouco o poeta Bacellar os introdutores do haicai no Amazonas.

Os quarenta anos seguintes a Argila foram pródigos no aparecimento de cultores do haicai, entre os quais, de memória, destaco Jorge Tufic, Anísio Mello, Ronaldo Bonfim, Anibal Beça, Simão Pessoa e até o locutor que vos fala, além dos já citados Bacellar e Evangelista. Na virada para o século 21 nasce o Grêmio Sumaúma, que tem vida efêmera: apenas um ano de atividade. Mas, revelou muitos autores, entre os quais, sempre correndo o risco de esquecer alguém, cito Rosa Clement, Dedé Rodrigues, Grace Cordeiro, Urdapilleta Sanches, Sergio Luiz Pereira e um pessoal que, quase 25 anos depois, ainda lavra a seara do haicai: o grupo intitulado CLAM – Clube Literário do Amazonas, sob a liderança de Nelson Castro. O grupo, aliás, lançou este ano o livro Kigo, com poemas de quatro de seus componentes, e já prepara uma nova coletânea.

Em paralelo, o trabalho realizado na UFAM, pelo professor Cacio José Ferreira e outros, nos faz acreditar que aquela tradição referida no início segue “de vento em popa”, para usar uma imagem bem nossa. Lembro Casulo de imagens: a poesia japonesa no Amazonas (2017), bela coleção de análises de autores e haicais, organizada pelos professores Cacio José e Rita Barbosa de Oliveira. Na orelha do livro, o professor Cacio reafirma a ideia de que a Amazônia é especial para a prática do haicai.

 

O leitor compreenderá que o haicai amazonense revela uma natureza peculiar, não deixando, porém, de portar a universalidade da poesia. Ao contrário, intensifica, diante das variadas imagens amazonenses, o desdobrável e tradicional gênero poético japonês.

 

Este livro que o leitor tem em mãos faz parte desse trabalho, trazendo à luz composições inéditas, onde encontramos nomes conhecidos, como dos professores Cacio e Guedelha, e uma maioria de, imagino eu, iniciantes que demonstram firmeza no uso da técnica e na execução da tarefa.

Para finalizar, permito-me comentar um pouco sobre a forma haicai. Existem muitas teorias para definir o que pode e o que não pode nas linhas e entrelinhas de um haicai. Mas o que vale para nós, pobres mortais, não vale para Paulo Leminski ou Millôr Fernandes, por exemplo. Feita essa constatação, pego a contramão:  quanto mais à vontade, mais Milorinski ou Leminslor, quanto mais libertário, mais você vai se aproximar da essência do haicai.

O rigor técnico vem com a elegância no domínio da linguagem. A técnica do “empilhamento de versos”, por exemplo, deve ser usada com cuidado, pois enrijece a composição. O poema deve fluir em uma frase ou duas. Veja este exemplo tirado de U. Sanches, no livro Poesia minimal (2013):

 

Tarde chuvosa

escondida nos bambus

a orquestra dos sapos

(p. 35)

 

Um pântano, a tarde chuvosa, eram as informações do haijin. Que sensações ele extrai de tão pouco? O primeiro verso exprime a melancolia do momento: uma tarde de chuva. Não está dito, mas infere-se, é fim de tarde e os primeiros sapos começam a cantoria. O poeta lírico certamente puxaria pela memória e faria uma relação daquele momento com algum sentimento recôndito. O haijin limita-se a registrar o momento, com os recursos que um fotógrafo ou mesmo um pintor não disporiam. Um cinegrafista, talvez. Mas não conseguiria, contudo, passar a mesma sensação que o poeta, porque ao leitor cabe compor a imagem e imaginar os sons que ela evoca, tornando-se cúmplice na criação. Esse leitor, se tiver alguma intimidade com a paisagem, despertará todos os sentidos: sentirá a chuva molhando sua pele; ouvirá o ruído da chuva e a música da saparia; perceberá o cheiro que emana daquele paul; sentirá na boca o gosto daquelas sensações todas; e sobretudo verá com todas as cores aquela paisagem cinza. Masum sexto sentido, que é um atributo do haijin: a percepção do que não é evidente, a intuição de que aquele momento único, que não irá se repetir jamais, é um poema, que ele, com seu poder de concisão, registra em nove palavras.

 Acrescente-se que o poema de Sanches foi construído em duas camadas: uma, refletindo a condição geral do poema, normalmente identificando com o kigo, isto é, o elemento do poema que define a estação na qual ele foi escrito; e outra refletindo o efêmero, o instante, a experiência jamais sentida. Flagrante de um momento único, o haicai é um poema tão concentrado, que, por muitas vezes, nem percebemos a poesia nele entranhada. Daí que o desapego às regras proporciona maior liberdade, resultando em maior concentração. O haicai é isso: uma explosão de sensações, porque, enquanto o lírico trabalha sentimentos, o haijin revela sensações.

Concluo, agora sim, conclamando a todos para fazer do haicai um instrumento a serviço da natureza, visando ensinar a paz e criar uma consciência de mudança comportamental e não negacionista nos jovens e, principalmente, nas crianças: o mundo está em perigo e a poesia pode ser usada para chamar a atenção disso. Vivemos no âmago da maior floresta tropical do planeta, o que nos lembra a enigmática e talvez profética sentença de Euclides da Cunha:

 

A Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis.[2]


***




 Apresentação do livro Vento na folha de bananeira, que você pode obter, em PDF, à sua direita.



[*] Zemaria Pinto é escritor, com 28 livros publicados em gêneros diversos, incluindo dois de haicais: Corpoenigma (1994) e Dabacuri (2004). Membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, é mestre em Estudos Literários, pela UFAM. Na década de 1990, foi professor, na UFAM, entre outras matérias, de Literatura Amazonense.

[2] CUNHA, Euclides. Prefácio de Inferno verde, de Alberto Rangel. In: Amazônia – Um paraíso perdido (seleção de textos amazônicos). Manaus: Valer, 2003, p. 354.