.
João Bosco Botelho
Para iniciar a discussão teórica entre as relações da arqueologia da doença com a teoria do caos, é adequado introduzir três categorias envolvidas com a cura das doenças:
• Medicina-divina: construída desde tempos imemoriais, como parte indissociável das ideias e crenças religiosas, notadamente como instrumento de catequese. Os agentes têm sido homens e mulheres, identificados como possuidores de dons especiais, representantes das divindades taumaturgas, para curar as doenças por meio de mágicas (ou milagres) rituais que incluem os toques das mãos sobre o suplicante;
• Medicina-empírica: intimamente relacionada e tão antiga quanto a medicina-divina. Os agentes são representados por homens e mulheres com forte aderência às crenças e ideias religiosas dominantes ou marginais, identificados nas comunidades pela qualidade de possuírem o dom de curar. Além dos ritos de natureza religiosa, onde se destacam também o toque das mãos, os sopros e danças, diferenciam-se dos agentes da medicina-divina pelo uso dos recursos da natureza circundante, amparados nos conhecimentos historicamente acumulados, para obter a cura;
• Medicina-oficial: os registros são uniformes, desde o passado de 3.500 anos, que os processos teóricos que continuam amparando a reprodução dos médicos, sob a guarda do poder dominante e como agentes exclusivos da medicina-oficial, foram construídos em torno de três determinantes principais interrelacionadas:
- Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;
- Estabelecer os parâmetros do normal e da doença;
- Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor fora de controles e da morte precoce.
Antepondo-se à medicina-divina e à medicina-empírica, o conjunto teórico da medicina-oficial tem assumido posição muito clara quanto à busca da materialidade da saúde e da doença: a arqueologia da doença está sendo decifrada nas dimensões cada vez menores da matéria viva.
As resultantes apontam para a certeza de esses saberes, amparado por processos teóricos, produzidos fora das ideias e crenças religiosas, continuam produzindo mudanças sociais duradouras. Do mesmo modo, acompanhando as inovações da ciência e da tecnologia, a medicina-oficial é a única responsável pelos avanços sociais que possibilitaram, em muitas circunstâncias, as pessoas viverem mais e melhor, vencendo muitos tipos de dor e evitando incontáveis mortes nos quatro cantos do planeta.
A busca da arqueologia da doença, fora das ideias e crenças religiosas, iniciou sua trajetória no século 4 a.C., na ilha de Cós, na Grécia, nos escritos de Políbio, o genro de Hipócrates. Esse genial médico, baseado nos quatro elementos de Empódocles (água, fogo, terra e ar), estabeleceu a primeira teoria — Quatro Humores (sanguíneo, linfático, bilioso amarelo e bilioso preto) —, para o entendimento das origens das doenças. Simultaneamente, provocou o longo processo, ainda em curso, de ruptura com as estruturas de poderes organizadas nas idéias e crenças religiosas e retirando dos deuses e deusas protetores a primazia de provocar a saúde e a doença.
A interpretação filosófica da teoria dos Quatro Humores, sob os conceitos de Bachelard (Bachelard, Gaston. Épistémologie. 3ª. sd. Paris. PUF. 1980), a teoria dos Quatro Humores, de autoria de Políbio, pode ser considerada o primeiro corte epistemológico da história da Medicina, materializando a partida na busca da arqueologia da doença e reduzindo a imensidão teofânica à visibilidade corpórea.
Assim, o entendimento da doença passou da abstração da mágica (ou dos milagres) ao corpo visível e mensurável.
Dois mil anos após, no Renascimento europeu, a partir do aprimoramento das lentes de aumento, ocorreu o segundo corte epistemológico da história da Medicina, nas publicações de Marcelo Malpighi, descrevendo o primeiro relato da micrologia dos seres vivos. Dessa forma, a materialidade da doença pulou da macroscopia dos corpos para os seres invisíveis aos olhos desarmados — os micróbios — mas, identificados por meio das lentes de aumento, o cerne do pensamento micrológico.
Pouco menos de duzentos anos depois, o genial frade agostiniano Gregor Mendel, na sessão de 8 de fevereiro de 1865 da União de Naturalistas de Brün, sem imaginar a grandeza do extraordinário salto que estava construindo, ao descrever as leis da segregação e da independência, explicando os resultados dos cruzamentos das ervilhas, levou a arqueologia da doença da dimensão celular à molecular, inaugurando o terceiro corte epistemológico da história da medicina, brotando o pensamento molecular, que culminaria, no século seguinte, com o estudo do genoma, uma das consequências mais fascinantes do pensamento molecular ou ultramicroscópico.
Sem pretender simplificar exageradamente, a busca da arqueologia das doenças está percorrendo o caminho da maior para a menor dimensão da matéria:
CORPO - ÓRGÃO - CÉLULA - MOLÉCULA
Com a anulação da porção teofânica, a construção dessa estrutura teórica, para que seja identificada uma parte do corpo “doente”, visível aos olhos desarmados, qual-quer que seja a ação motivadora da mudança no aspecto do corpo, determinando a “doença”, torna-se necessário que o caminho inverso seja igualmente verdadeiro, isto é, as alterações na matéria viva também estão presentes em todas as dimensões da matéria:
CORPO DOENTE - ÓRGÃO DOENTE - CÉLULA DOENTE - MOLÉCULA DOENTE
É possível oferecer abundantes exemplos de como se passa essa realidade nos tecidos vivos, dos seres multicelulares, passível de comprovação e, em muitos casos, a reprodução laboratorial.
A pessoa que apresenta, ao exame clínico, o bócio difuso não nodular (aumento do volume da glândula tireóide sem nodulação) com aumento da função (hipertireoidismo) é possível comprovar a doença nos três níveis.
- Corpo: aumento visível da porção anterior e inferior do pescoço;
- Órgão: aumento do volume da tireóide comprovado por meio do exame do ul-trassom;
- Célula: alteração visível por meio do microscópio ótico, característica somente do hipertireoidismo;
- Molecular: a dosagem dos hormônios presentes na corrente sanguínea que caracterizam o hipertireoidsmo.
Além de não existir dois bócios exatamente iguais; são diferentes entre si, mas mantêm certas características semelhantes, capazes de justificarem agrupá-los sob a mesma nominação.
A complexidade da arqueologia da doença aumenta na mesma medida em que temos a certeza de a matéria viva não termina na dimensão molécula, considerando o espectro da matéria, abaixo, da maior dimensão em direção à menor (da esquerda para a direita):
MOLÉCULA - ÁTOMO - PRÓTONS - NEUTRONS - ELETRONS - PARTÍCULAS SUBATAÔMICAS - BÓSON DE HIGGS (?)
O acesso visual como uma etapa para compreender a forma das estruturas vivas, seja por meio da visão desarmada ou com a ajuda da microscopia ótica e da microscopia eletrônica, só alcança parte da matéria viva:
- corpo e órgão, visíveis aos olhos desarmados;
- célula, visível à microscopias ótica e eletrônica;
- molécula, invisíveis;
- átomos, invisíveis;
- partículas subatômicas; invisíveis.
Essa é a razão pela qual mesmo com o inegável progresso para desvendar a arqueologia da doença, a medicina-oficial não sabe em qual dimensão da matéria o normal se transforma em doença (se é que a doença realmente existe como está sendo concebida). Talvez esse enigma esteja relacionada à pouca compreensão dos sistemas vivos sob o prisma da Termodinâmica. Até hoje, continua sendo muito difícil entender o homem, como exemplo de sistema aberto, consegue manter a vida com rigorosa ordem interna e baixa entropia.