Amigos do Fingidor

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Paulinho da Viola – melancolia, humor e paixão

.Zemaria Pinto

Ele não tem o glamour cosmopolita de um Tom Jobim, nem o charme intelectual de um Chico Buarque, tampouco a têmpera histérico-polêmica de um Caetano Veloso, muito menos a ginga histriônico-política de um Gilberto Gil. Paulinho da Viola, ao contrário, move-se no etéreo: suas referências mais próximas são Noel Rosa, Pixinguinha, Ataulfo Alves, Nelson Cavaquinho e Cartola, todos devidamente canonizados.

E o que esses santos têm em comum? Com certeza, uma paradoxal tradição revolucionária. Cada um deles produziu, em algum momento dos últimos setenta anos, “estranhamentos” diversos, que enriqueceram sobremaneira essa coisa frágil que é a música brasileira, submetida aos caprichos da indústria fonográfica, que só dá valor ao “clube do milhão”, rendoso negócio de milhões em dólares. E dane-se a qualidade.

Paulinho da Viola continua, e estende, essa tradição: sem grande alarde, constrói, há 30 anos, uma obra cuja perenidade não deixa nenhuma dúvida, porque paira acima de modismos e jogadas de marketing. Calcado no tripé melancolia (uma tristeza indefinida, feito canto de pássaro), humor e paixão pelo samba, Paulinho cria tanto canções para animar uma quadra ávida por um agito carnavalesco quanto impossíveis peças que só se permitem a audição silenciosa e devota. É assim desde o primeiro disco, com “Sem ela eu não vou” e a obra-prima “Coisas do mundo, minha nega”, nunca ouvidas, por certo, por esses pagodeiros paulistas, tão em moda. Aliás, pagode mesmo é coisa séria, como não cansa de repetir o meu amigo Edvaldo Pagodinho.

Mas em Paulinho da Viola o conceito de obra-prima só se realiza no plural, como a Manaus cantada pelo Aldisio Filgueiras. No capítulo das invenções, por exemplo, além da citada “Coisas do mundo...”, é imprescindível lembrar, em ordem cronológica, “Sinal Fechado”, “Para ver as meninas”, “Dança da solidão”, “Comprimido”, “Roendo as unhas”, “Zumbido”. A estas, junta-se agora “Bebadosamba”, que empresta o nome ao mais recente disco de Paulinho, uma homenagem àqueles que fizeram do samba a música brasileira por excelência: “chama que o samba semeia / a luz de sua chama / a paixão vertendo ondas / velhos mantras de Aruanda”. E segue um desfile de santos, além daqueles citados no primeiro parágrafo: Ismael, Sinhô, Donga, João da Baiana, Geraldo Pereira, Monsueto, Mano Décio, Candeia, Mauro Duarte e tantos outros.

Mas “Bebadosamba”, o disco, não é só invenção. O Paulinho da Viola compositor de inúmeros e bem-humorados “sambas de costumes”, como “Papo Furado”, “Dona Santina e Seu Antenor”, “No pagode do Vavá”, “Dívidas”, “O Velório do Heitor”, “Meu novo sapato”, entre outras que a memória teima em esconder, oferece-nos agora um delicioso presente, futuro clássico, “Memórias Conjugais”, dedicada ao nunca assaz louvado poeta Aldir Blanc: “lapidar / foi a sua frase / proferida de um jeito natural / registrei esta preciosidade / sem alarde / no meu livro de memórias conjugais / – ‘tenho asas, meu amor, preciso abri-las / ao seu lado não sou muito criativa’ – / depois dessa / fui em busca do meu antidepressivo / e afundei / no sofá com meus jornais”. Quem nunca viu esse filme?

Paulinho nunca foi de muitos parceiros. Além dos constantes Capinan (“Coração Imprudente”, “Orgulho”, “Prisma Luminoso”), Sérgio Natureza (“Vela no breu”, “Brancas e pretas”, “Último Lance”) e o inefável Elton Medeiros (“Moemá morenou”, “Recomeçar”, “Onde a dor não tem razão”), algumas poucas parcerias com Hermínio Bello de Carvalho (“Sei lá, Mangueira”, um clássico), Casquinha (“Recado”) e Mauro Duarte (“Foi demais”). Neste novo disco, ele retoma parcerias com Elton (“Ame”), Hermínio (“Timoneiro”) e Natureza (“Mar grande”). O curioso é que as canções destes dois parecem dialogar entre si: “não sou eu quem me navega / quem me navega é o mar”, diz o refrão da primeira, ao que a segunda responde “se navegar no vazio / é mesmo o destino / do meu coração / parto pra ser esquecido / navio perdido / na imensidão”. No capítulo das parcerias, uma novidade: “Solução de vida”, com o poeta Ferreira Gullar.

A paixão pelo samba, não bastasse tudo o que já se disse, traduz-se também em alguns clássicos do samba de quadra, como “Perder e ganhar”, “Guardei minha viola”, “Argumento” e “Não posso negar”, que tratam de problemas relacionados às escolas e à própria sobrevivência do samba, com o perdão da má palavra, de maneira metalinguística. Nessa linha, a mais popular canção de Paulinho, e, na minha modestíssima opinião, a mais bela, “Foi um rio que passou em minha vida”, é exemplar. Feita para acalmar os ânimos de uma Portela enfurecida pelo fato de seu pupilo ter colocado música nos versos de Hermínio Bello, em “Sei lá, Mangueira”, de lá pra cá rolou muita história, mudando o rumo dos ventos.

Em “Bebadosamba”, Paulinho prestigia a velha-guarda de sua velha escola gravando Candeia, Casquinha e Noca, mas, ao fazer samba sobre samba, prefere falar da inspiração, em “Quando o samba chama”: “tão imprevisível chega e logo sai / vive provocando sobressaltos / no meu coração / que não tem coragem de renunciar / ao prazer de uma velha paixão / o que era um sonho / pétalas no mar / logo é pura transpiração”, para concluir, “mas se o tempo se acha no sol do poente / e do céu se retira um pedaço do azul / o poeta ressurge / e lança no ar a semente / e reparte feliz a sua luz”. Paulinho da Viola, não tem feito outra coisa, a não ser repartir a luz de sua poesia e de sua música com quem sabe ouvi-la.


Ilustrações: retrato de Paulinho da Viola, por Roberto Weigand, e capa do cd Bebadosamba.

Artigo publicado no jornal Amazonas em tempo, na vazante de 1996.