Amigos do Fingidor

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Carta aberta aos estudantes de Letras da UEA

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Caros estudantes,

Como é do conhecimento de muitos, recentes atitudes protestativas de uma parcela do corpo discente do curso de Letras da UEA (Manaus) foram dirigidas a mim, uma vez que no vazio presente na faixa dependurada, nos últimos dias, na praça central da Escola Normal Superior constava inicialmente meu nome. Sou professor desta universidade há dois anos, e esta não foi a primeira vez que vozes anônimas (dado que “assinar” Letras seja, antes de tudo, esconder-se em anonimato) ou pseudônimas têm se queixado de meu rigor como professor – o que teria provocado, segundo o texto da faixa, perda de interesse pela literatura. Evidentemente, a assertiva deve ser entendida apenas em relação àqueles que porventura um dia tenham de fato se interessado pela literatura.

A faixa anônima acima referida foi, na verdade, o mais terno dos gestos com que tenho sido agraciado. O mais comum tem sido o envio de mensagens eletrônicas que oscilam entre o deboche e a ameaça. Emails com assinaturas falsas, como talvez muitos saibam, não são, infelizmente, novidade para mim nem para colegas meus, também ofensivamente citados nessas mensagens. Há alguns semestres, no teor discursivo daqueles textos, reconheciam-se facilmente elementos como o bairrismo, o ressentimento e o asqueroso complexo de vitimização do qual a província ainda não conseguiu se libertar. Assim, em relação a meus colegas professores, o discurso anônimo sublinhava o fato de eles serem de outros lugares do Brasil.

É interessante que algo nesse espírito tenha sido observável recentemente em Manaus, pois, ao ser divulgado o resultado do ENEM, estudantes, por assim dizer, locais protestavam contra a adesão da UFAM ao exame. O “argumento” era a perda de vagas para o alunato de outros estados. Se mentalidade tão estreita vigorasse país afora, inúmeros pesquisadores amazonenses não se teriam titulado; e nesse grupo eu me incluiria. Da mesma forma, estudantes aqui graduados em Letras veriam suas chances de cursar mestrado e doutorado na área reduzidas a quase zero e a zero, respectivamente. É de se notar que os vestibulandos locais descontentes com o ENEM não se organizaram para exigir melhoria na Educação Básica do Amazonas, uma das piores do Brasil.

Em relação àqueles emails, nunca lhes dei muita importância. Nunca respondi a nenhum deles, pois simplesmente não via sentido em fazê-lo. Mesmo quando houve uma ameaça direta ao meu filho de 7 anos de idade, não respondi a quem quer que estivesse por trás da máscara da covardia. Na ocasião a que me refiro, da ameaça a meu filho, encaminhei cópia do email à Direção da faculdade, que por sua vez o encaminhou à Pró-reitoria de Graduação, então sob responsabilidade da Prof.a Ednea Mascarenhas Dias, em cujo despacho me sugeria procurar a polícia. Em outras palavras, a universidade se calava ante a questão. Não levei adiante o problema, em princípio, por não acreditar nas nossas instituições, conforme a falta de atitude da UEA me fez concluir. Além disso, não levei a sério a ameaça ao meu filho especialmente porque a maior ameaça a ele já está em andamento, se observarmos as péssimas condições intelectuais daqueles que hoje figuram potenciais professores de Língua Portuguesa.

Não creio que mensagens ou faixas anônimas constituam meios construtivos para um debate profícuo. Na verdade, já passa da hora de estabelecermos – alunos, dirigentes e professores – os fóruns adequados para que se debatam os temas pendentes (e são muitos) nesta universidade. Não sei se esta carta pode ser um estopim para esse processo; acho difícil que o seja. Mas, ao menos, ter-se-á nela a opinião clara e assinada de um membro pertencente a um dos segmentos interessados nesse debate.


Inicialmente, penso que há uma questão muito profunda na base do problema, que diz respeito ao exercício da docência no Brasil e que se configura num (pseudo) dilema: ou o sujeito aceita logo a modorra geral e a ela se incorpora, ou enfrenta as adversidades que se levantam contra um profissional comprometido. Se o professor vê seu trabalho como uma atividade de intelectual e escolhe desempenhá-lo criticamente, deve se preparar para uma série de contratempos. Uma coisa que gostei de perceber nos emails pseudonímicos é que seu autor (ou autores, conforme penso) parece ter clareza da existência de um problema no microcosmo do curso de Letras da UEA, metonímia da educação brasileira: ler e escrever é, mais que penoso, é matéria de suplício. Sei que isso integra o enorme círculo perverso em que o ensino brasileiro está preso. Mas creio que muitas vezes bastaria que alguém simplesmente fizesse o que deve fazer (i.e., aquilo que se espera que alguém faça, pelo próprio ofício que desempenha) para que esse círculo tremelicasse. Digo “tremelicasse” porque sei que a grande estrutura não sofre nem perto de um abalo quando um professor faz aquilo que deve (prepara-se, fornece material, orienta, dá aulas com embasamento e verifica rigorosamente os resultados); mas no microcosmo que é Letras-UEA nós já sabemos que os abalos têm sido constantes. Infelizmente, a problemática está para muito além do simples fato de alguns alunos não quererem fazer esforço – esses há, mas são a menor parcela. O que ocorre é que muitos alunos, mesmo estudantes de Letras, quando olham para uma página literária, sentem-se como que olhando para um muro muito alto e branco, intransponível e opaco. Onde estarão os mecanismos que fazem um indivíduo começar a ver sentido onde até então ele só vê o nada? É lugar-comum que esses mecanismos sejam dispostos ao sujeito nos primeiros anos de sua vida escolar. Não discordo de que haja bases importantes nesse período, mas não vejo por que condenar alguém ao limbo da ignorância (restrita ou ampla) sob a rubrica do assistencialismo pedagógico.

Em outras palavras, quando a universidade recebe um aluno que teve uma formação pobre e “entende” as suas carências e opta pela complacência, ela, a universidade, comete um duplo erro: 1. ela, cinicamente, retira do aluno talvez a sua última chance de se tornar enfim um leitor; e 2. ela cria um sofisma a que poderíamos chamar (com uma dose de ironia machadiana) equacionamento da defasagem educacional, nivelando por baixo, perpetuando as dimensões reduzidas do campo intelectual desse aluno e empobrecendo a si mesma como universidade. É uma potencialização perversa do antigo laissez-faire, pois do binômio dar recursos para deixar fazer fica o monômio final. Lamentavelmente, como todo bom sofisma, esse também convence a muitos. Como creio que alguns apoiadores da faixa anônima e dos emails pseudonímicos não tenham ficado reprovados em uma disciplina ministrada por mim, isso mostra até onde pode chegar tal convencimento, uma vez que se trate de alunos, por assim dizer, isentos. Eles, como a maioria da ignorante sociedade brasileira, acreditam que rigor seja má-vontade, estudo seja não mais que obtenção de “currículo” e que ensino seja assistencialismo cultural.

Vejo, no entanto, alguns progressos no curso. Há, é claro, alunos que desde o início demonstram grande potencial para docência e pesquisa – e esses têm se aprimorado; prova disso, é que tenho aumentado para eles o grau de exigência conforme percebo esse aprimoramento. Mas o que mais gratifica é ver alunos que têm (a muito custo, creio eu) conseguido avanços aparentemente pequenos, mas proporcionalmente gigantescos.

Como se pode ver, a questão é mais complexa do que uma simples brincadeira via internet ou uma faixa amarela. Há mesmo problemas a serem enfrentados pela coletividade que compõe o curso de Letras da UEA. Quem sabe, estejamos frente a uma oportunidade de reformulação estrutural, seja pedagógica, seja administrativamente. Sou a favor, por exemplo, da extinção do mecanismo que dispensa da Prova Final o aluno que tenha obtido média mínima de 8,0 (oito) entre a avaliação Parcial 1 e 2, pois muitos têm entendido a PF como recuperação (!). Consequência disso tem sido, de um lado, o afrouxamento das exigências por parte de alguns professores e, de outro, a crença que muitos alunos têm de estar sendo injustiçados com nota inferior àquela média, mesmo quando se fez apenas “um plagiozinho”. Há, evidentemente, outros pontos que deveríamos discutir, como a ampliação do curso em mais dois ou três semestres e, até, a criação de um bacharelado em Letras, com complementação pedagógica uma vez concluído o bacharelado.

Quem sabe, em breve, tenhamos discussões no âmbito do curso, com honestidade e sem melindres. Espero que sim. Os ganhos seriam enormes, muito mais que individualmente, pois cada turma fica quatro, cinco anos na UEA, e professores, felizmente, são mortais. Mas é bom lembrarmos que nossas práticas como professores e alunos têm vida para além de nós, indivíduos, repetindo-se nas próximas gerações.


Manaus, 28 de julho de 2010.



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Prof. Dr. Allison Leão