Amigos do Fingidor

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Memórias-sócio-genéticas e as linguagens-culturas: construções essenciais da vida – final

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João Bosco Botelho


As ideias arcaicas, amparando a sobrevivência, foram armazenadas, como parte dos mecanismos cerebrais primários, em algum lugar do cérebro. A capacidade de reproduzir a idéia ficaria por conta das leituras, no sistema nervoso central, identificando a proposta como algo capaz de aprimorar o conforto.

A característica pessoal, única e intransferível, processada pelo córtex cerebral, com a marca biológico molecular nos genes, transmitida com a reprodução sexuada, ficaria dependente da experiência vivida no conjunto social. É como nascem e se reproduzem todos os saberes.

Apesar de a unidade ser mantida, teria traços comuns muito fortes. A dor e o desconforto seriam dois deles. Qualquer variável circunstancial, capaz de ser entendida pelo ser como sensação dolorosa, produziria resposta somático neurológica imediata, buscando, na intimidade da memória acumulada, todos os mecanismos cerebrais para impedir ou atenuar o desconforto.

A dificuldade para moldar o pensamento coletivo, de acordo com a conveniência do poder, reside nessa barreira: é impossível encontrar duas estruturas biológicas exatamente iguais.

Por outro lado, quando o dominante compreende o valor dos registros genéticos, principalmente a subjetividade, nascido na ficção, para suportar o desconforto e a dor, investe na conquista das mentalidades, através das linguagens oral e escrita, seduzindo a partir da valorização deles.

Existe uma inegável dificuldade para se ter acesso ao cérebro humano, não só porque se desconhece onde e como, mas também pelos limites impostos pela ética da pesquisa científica. Contudo, os casos clínicos, de achado acidental, são capazes de levar aos grandes progressos.

Os estudos desenvolvidos na Universidade Western, Ontário, sobre a consciência não manifesta (ou aparente descompasso entre o comportamento manifesto e a memória) são importantes para compreender a hipótese das MSGs.

A doente, estudada pelo grupo de pesquisadores, no Canadá, tinha sofrido dano cerebral por intoxicação de monóxido de carbono. Quando se recuperou, a sequela neurológica ficou localizada próxima ao córtex visual primário. Os testes seguintes mostraram que era incapaz de identificar uma xícara de chá, todavia os movimentos para pegar a mesma xícara e levá la à boca eram normais.

Esse tipo de comportamento alterado reforça a existência de, pelo menos, duas formas diversas do reconhecimento visual: uma dependente da percepção e a outra das funções motoras.

O outro relato significativo foi feito pelo psicólogo suíço Claparède, no início do século. As análises foram concluídas numa paciente, portadora de severo distúrbio para assimilar os fatos recentes. Na entrevista, ao apertar a mão do entrevistador, teve a sua furada, intencionalmente, por um alfinete. No dia seguinte, ela não reconheceu ninguém, porém se recusou a repetir o gesto que provocou desconforto.

A parte ativa da consciência, alerta mesmo em situação psicótica, a lembrança do desconforto da dor, está atada ferozmente aos laços genéticos e é, incomparavelmente, muito mais forte do que a banalidade motora de levantar um objeto.

Todas as tentativas de efetivar o controle social, pelo poder dominador giram nesses dois pontos comuns e antagônicos: oferecer o prazer e a dor, respectivamente, como prêmio e castigo pela obediência.

Qualquer moção lembrando a possibilidade para atenuar a dor histórica e fortalecer a partilha igualitária, sentida pelas sucessivas gerações dos esfomeados de pão e de justiça, terá uma sedução irresistível, ao resgatar os símbolos comuns da MSGC.

As teorias políticas e práticas religiosas para interferir no curso do movimento social utilizaram, em maior ou menor escala, os seguintes pontos, como variáveis dos remédios para sarar as dores e das fórmulas para aumentar o conforto:

– Promessa de prolongar a vida;

– Acesso à sociedade onde o trabalho é ameno, a comida é farta e a prática sexual é liberta das amarras da conduta;

– Inconformidade com a morte antecipada pela doença, pela fome e pela injustiça;

– Espaço sagrado (templo) ou profano (partido político) para defender a causa comum e julgar os resistentes;

– Aumento da proteção individual;

– Melhoria das situações temidas, causadoras de desconforto: a fome e o frio.

Algo muito poderoso se passou na intimidade da memória acumulada na espécie humana. Ainda não podendo afirmar que as ideias são transmitidas de modo semelhante às características físicas, resta nos o êxtase do quanto fascinam os homens e as mulheres alegorias simbólicas que ligam o passado remoto ao presente vivido.

Por tudo isso, a escrita consolidou, nas mentalidades, o divino e a posse do território como os mais poderosos resultantes da ficção. Os dois ordenaram, no mundo objetivo, de acordo com a conveniência temporal do poder, as duas mais importantes fontes de prazer: a sexualidade e o alimento.

O divino é, intrinsecamente, forte e sem a sua ajuda não teria sido possível manter a atual ordem espacial, prevalente no mundo. Em qualquer hora, seria capaz de impor a dor e modificar a arqueologia do prazer, contra todos os ritmos esperados da natureza. Os mortais, feitos à imagem e semelhança da divindade, são, ao mesmo tempo, os instrumentos e as vítimas. A dádiva ou o castigo divinos não ficam restritos somente à vida; prolongam se após a morte. Dependendo da obediência aos preceitos, o renascimento será confortável ou aflitivo.

O “Livro dos Mortos”, conjunto de textos funerários gravados nas paredes da Pirâmide Real do antigo Egito, com origem no reinado de Unas (2345 a. C.), último rei de V dinastia, é composto de hinos e receitas mágicas para garantir o renascer protegido.

As obras de Platão, interpretando pensamentos muito mais antigos, espelho fiel das angústias existenciais não resolvidas, contribuíram para manter o interesse especulativo, no Ocidente cristianizado, sobre o sentido da vida, partindo do esperado depois da morte.

O cinema, como uma das expressões de arte mais significativas do nosso tempo, continuou o movimento e mostra o quanto é robusta, no inconsciente coletivo, a sedução para continuar vendo os matizes da dualidade prêmio/castigo na vida e na morte.

O controle social, imposto em diferentes momentos do processo de humanização, mesmo utilizando os recursos mais indignos da perseguição, do assassinato e do patrulhamento ideológico, não conseguiu remover das MSGs a resistência à inevitabilidade da morte.

O político, compreendido como o sucessor do intermediário da divindade, travestido dos antigos poderes de curar e adivinhar os males da sociedade, está inserido na coerência genético social. A contínua penetração do seu poder espelha a força da MSCG na ordem social.

O avanço organizado para consolidar o cristianismo como religião universal foi muito bem estruturado em torno da doença como mal pessoal e social, interpretado a partir da leitura da Bíblia judaico cristã. O mundo cristianizado está atado nesse registro arcaico da memória coletiva, alcançando todos, independente da condição sócio econômica.

O cristianismo, ao contrário do rígido monoteísmo judaico, sobreviveu porque continua lembrando a metamorfose do politeísmo. Substituíram os antigos fetiches e amuletos pagãos pela água benta, o sinal da cruz, as velas da Ascensão, as palmas do domingo de Ramos, os rosários, as medalhas, os santinhos colocados no pescoço.

A legitimidade da doença e do sofrimento como instrumentos de castigos e ameaças de dor, aperfeiçoados pela linguagem escrita, está inserida no exercício do poder.

Na crítica da proteção pura, a relatividade do tempo é reafirmada, à medida em evidencia a fantástica coerência existencial entre o visível e o invisível.

O binômio tempo/espaço, fracionado unicamente pelo pensamento, é o começo, o meio e o fim da interação ajustada entre o ser e o objeto através das MSGs. Como unidade indissolúvel e inseparável, abriga e vivifica a diversidade das aspirações humanas arcaicas para viver sem dor e adiar a morte.

A posse do território e a divindade são as mais importantes ficções, trabalhadas ambígua e alternadamente no profano e no sagrado. A ordem social, desde o passado ágrafo, foi montada entre a terra, morada dos homens e das mulheres, e o céu, abrigo dos deuses.

Os sacerdotes e os políticos, travestidos de curadores e adivinhos, como agentes das religiões e das ciências, continuam sendo os instrumentos legítimos, usados pelo poder, para imobilizar o tempo e separar os espaços, com o objetivo de ordenar as mentalidades.

A competência do controle das sociedades está no modo como é tocada nas MSGs. É na entranha do corpo, nos limites desconhecidos da massa com a energia, no interior das células, que o poder aperfeiçoa as ferramentas para moldar a estratégia de sedução, atualizando as projeções mentais muito antigas sobre as novas verdades e estimulando a cooperação.

O conflito das contradições, gerado pelo choque das idéias orais e escritas, é a única alternativa para afrouxar a dominação e o apagamento das MSGs.