Amigos do Fingidor

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A fragmentação das torres – 5

Marco Adolfs

Tio Otávio vai viajar


“Tchau, Cristo... logo atingiremos as nuvens e não verei mais nada”.

Sigo os passos do sonho. Para mim, agora, viver é isso. Entrar em aviões, vagões e quartos de hotel em um tour ao redor do mundo. No embalo disparado das turbinas metálicas dos aeroportos; no sopro subterrâneo dos metrôs. Sendo levado a descobrir os cantos de inúmeras ruas de inúmeras cidades do mundo. Sabendo que tudo é passageiro. Que você também é passageiro nisso tudo. Que o prazer está, única e exclusivamente, na descoberta. Em um quadro de Van Gogh vislumbrado no museu D`Orsay, em Paris. Ou em uma pizza, comida, despretensiosamente, em um restaurante de Nápoles. Claro que tudo são sensações que qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento também pode desejar viver. Todos nós já lemos alguma coisa algum dia e vimos algum programa de televisão que nos abriu a vontade de conhecer in loco um Cristo de braços abertos encarapitado no alto de um morro, ou as ruínas misteriosas de Machu Pichu, no Peru. Quem não quer? Mas a minha vida tomou esse rumo de viagens e hotéis, quando o meu médico deu o diagnóstico: “você tem câncer”. Aí só tive duas opções: ou me entregava a uma cama de hospital e à quimioterapia, esperando a morte chegar desse jeito; ou então viajaria até o fim do mundo, antes de morrer, quem sabe onde. Estava aposentado ainda novo, bem alimentado e aparentemente não tinha câncer nenhum. O médico havia me dado um ano de vida, talvez dois. “Ótimo doutor, muito obrigado – pensei –, vou morrer em algum lugar do mundo, menos em um leito cheirando a éter de hospital”. Nem me despedi dos amigos, nem dos parentes. Sempre gostei muito de fugir, sabe. Desde criança, quando pulava a janela da casa grande e, sob os gritos de minha mãe, corria para abrir a porteira do mundo. Corria para os campos de fora, onde um riacho translúcido estava sempre a esperar e ainda havia as estradas das frutas dos terrenos vizinhos. Quando papai vendeu a fazenda e disse que todos iriam morar em um apartamento pequeno na capital – “pois ele já estava cansado daquela vida et coetera e tal” – pensei que fosse perder todo aquele espaço da liberdade. Não só não perdi, como passei a descobrir que cada rua de uma cidade sempre leva a outra rua, em um labirinto sem fim. E além disso, havia aquela praia de Copacabana a meus pés. Era só sair do tal condomínio e ela estava lá, com o seu gosto salgado de ser e suas ondas sensualmente envolventes. Sempre fui meio vagabundo. E no Rio de Janeiro, capital da “boa vida”, segundo meu pai, isso se consubstanciou de forma mais categórica. Eram os anos sessenta, e eu, sem perceber, crescia junto com a garota de Ipanema, enquanto Tom Jobim e Vinicius de Morais tomavam seus porres homéricos nos intervalos de suas composições.

Quando o avião decolou, rumo a Portugal eu recitava baixinho aqueles versos, que diziam: “...navegar é preciso, viver não é preciso...”. Um doente, aparentemente terminal, viajando aparentemente despreocupado com o que carregava no interior do corpo, é no mínimo uma situação de dar pena. Mas, se eu pudesse aconselhar a muitos na mesma situação que a minha, que deixassem os hospitais e as lamentações e, se fosse possível, morressem voando ou em algum quarto de hotel, eu aconselharia pessoalmente.

Estava indo então para a Europa e de lá até o Tibete... Para uma série de meditações programadas... Antes de morrer.