Amigos do Fingidor

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Gabriel saiu para almoçar 6/15

Marco Adolfs


...Sombra recomeçou então a escrever relatando o caso de Jó, o proscrito e infeliz homem; desprezado por irmãos, parentes, amigos, empregados e até pela esposa. Mas, pensou o poeta como conforto, “será que para ser forte torna-se necessário ser só?”; ou pelo menos “andar de vez em quando pelo vale da sombra da morte”. Se o próprio Jesus passou por esse sufoco, o que não poderá passar o simples homem? pensou, ao lembrar-se de que o Nazareno, segundo o que foi relatado por aquele tal de Mateus, retirou-se de perto do tumulto em um barco e foi para um lugar deserto; à parte; e, quando a multidão ficou sabendo, seguiram-no a pé desde as cidades. O pobre do Jesus não podia nem orar em paz, pensou Gabriel Sombra, rindo. Para poder orar de forma útil e produtiva, faz-se mister a solidão, escreveu então, seguindo a sua linha de raciocínio. Ao pensar em oração, as associações mentais o levaram na direção da única litania que ele conhecera com profundidade quase que eclesiástica: as rezas etílicas de todos os solitários do mundo; aquelas que acontecem nas mesas e balcões de bares. Quase como um catarse enlouquecida; uma confissão de dores. Naquele confessionário próprio para os esquecidos e solitários se lembrarem de que existem uns para os outros; e que – para evitar que puxem o gatilho de um revólver apontado para a própria cabeça ou cometam harakiri nos seus lugares solitários de retorno –, usam como um templo erigido à um outro tipo de esperança: a do encontro fortuito da amizade necessária. Beber, e depois dormir. Esquecer do que dói no peito. Quantas e quantas vezes ele não fez isso, mesmo sabendo que quando acordasse, o mundo ainda estaria lá fora, com a realidade cruel de uma outra espécie de loucos, o obrigando a sobreviver? Sombra lembrou então de uma dessas suas noites etílicas em que tentou domar a solidão bebendo todos os tragos estragados da vida. Aquela garrafa que poderia ser a última e que parecia ser a primeira lhe acomodando a alma não resolvida de sonhos e desesperos. O obrigando a gritar seu grito primal para os companheiros. E, quando chegou em sua casa, o corpo dolente abatido com os tiros do álcool, finalmente descansando dos milhares de pensamentos alienantes e de uma solidão acachapante. Lembrou das vezes em que deitou em sua rede e vomitou essa amarguras; deixando-se prostar por cima do seu próprio vômito; e, após, entregando-se ao esquecimento, com os braços de Morfeu levando-o em direção ao nada. “Pelo menos não pensava”, pensou...