Amigos do Fingidor

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Maranhão Sobrinho, o místico de Satã – 1/4

Zemaria Pinto*


são páginas, talvez, feitas de gritos
(Maranhão Sobrinho)

Ninguém está só ao morrer.
(Antonin Artaud)

I – O calor provinciano


A crítica literária costuma olhar o passado com a perspectiva do presente. Autores são “revisados” sempre tendo em vista a sua aproximação com os contemporâneos. Autores que não lograram reconhecimento em vida, tendem a se perder no tempo, a menos que se descubra que o seu esquecimento foi fruto da incompreensão de sua época, por estarem à frente dela. Essa é a lógica da arte. Grandes poetas, sobram cinco ou seis por século. Os cânones vão se afirmando e colocando no esquecimento aqueles que não passam no crivo da permanência.

O que dizer, então, dos poetas provincianos, aqueles que não conseguem se impor nem mesmo entre os seus, que não reconhecem nele senão um a mais na horda dos que se entregam à indolente tarefa de espicaçar as musas? A província não tem história e nem mesmo veleidades de alta cultura. A arte é um subproduto do imediato, do que se consome em todos os lugares. A província não tem pudor por não ter cultura porque sua cultura é a cultura do mundo. De todo mundo.

Mas não use a carapuça ainda, meu caro leitor (assim me expressarei, leitora, mas só por conveniência; afinal, são milênios de patriarcado). A crítica de arte que se deixa levar pelo sentido ideológico, cobrando posições de seus artistas, é uma prática provinciana, seja em Paris, Londres ou São Paulo. Maranhão Sobrinho, o poeta-objeto desta breve análise, ainda hoje é visto como um produto da óbvia indigência das nossas letras na virada no século passado. Maranhão Sobrinho era um bêbado, um pária, um versejador medíocre, a quem a província sempre quis ver pelas costas. Entre seus pares, poetastros a grande maioria, era ridicularizado pelo exotismo de apreciar os poetas franceses malditos – que, aliás, já publicavam havia 50 anos.

Essa pressão, exercida pela falta de respeito que a província tem aos seus artistas, fez de Maranhão Sobrinho um caso raro na literatura brasileira: um excelente poeta que, em não mais de 3 anos, se abastarda de tal modo que se torna irreconhecível até de si mesmo. Um caso raro de involução, pois o seu trabalho mostra um recuo radical em relação às propostas iniciais. Talvez em busca de reconhecimento, ele abdicou de sua obra, como um Fausto de opereta. Mas era tarde.


II – De Paris para o mundo, incluindo o Brasil


Ao final deste ensaio, o caro leitor perguntar-se-á por que não comentei acerca do Romantismo e do Parnasianismo, que, então, terão sido tão citados quanto o Simbolismo; antes que o faça, respondo. Na obra de Maranhão Sobrinho é o Simbolismo o traço mais marcante, onde as tensões entre linguagem e realização poética atingem momentos de alta ressonância. E todo o resto é literatura, como diria Verlaine.

O Simbolismo enquanto movimento estético é uma tomada de posição no mundo. A sociedade burguesa da segunda metade do século XIX tem seus valores questionados por um grupo de poetas que têm as mesmas aspirações em vários lugares diferentes. Ao positivismo, ao naturalismo e ao materialismo que grassavam à época, eles opunham a valorização do individual e, por consequência, do espiritual. Adeptos de Schopenhauer e Nietzsche, filósofos que pregavam o voluntarismo, esses artistas queriam passar ao largo das grandes aspirações românticas e, voltando-se para si mesmos, construir uma linguagem nova, que tivesse o mesmo poder abstrato da música: comunicar sugestões. A linguagem escrita seria representada não mais por objetos concretos, mas por símbolos que exprimiriam, de forma sugestiva, o que vai na alma do indivíduo. Desde as Flores do Mal, de Baudelaire, publicado em 1857, a crítica é unânime, ou quase, em apontar a obra de Stéphane Mallarmé como o ponto mais elevado do Simbolismo.

Em O Castelo de Axel, Edmund Wilson identifica duas vertentes principais no Simbolismo francês: a “sério-estética”, onde se filiariam Baudelaire, Verlaine e Mallarmé, e a “coloquial-irônica”, representada principalmente por Tristan Corbière e Jules Laforgue. No ensaio “Antipoesia no Simbolismo”, Augusto de Campos assinala que “não tivemos, praticamente, no Brasil, representantes significativos do ‘coloquial-irônico’(...), que se filiava ao gênero maldito do humor, da poesia-crítica, destinada, por equívoco, a não ser levada muito a sério pelos estetas da poesia-poética”. Mais adiante, ele ressalva que a projeção mais radical da vertente “sério-estética”, aquela que se formou sob o signo de Mallarmé, também não teve representantes no Brasil – “com exceções de poemas, mais do que de autores, e de versos mais do que de poemas”. O que terá restado então do Simbolismo no Brasil, perguntará o leitor, cioso dos nossos patrícios simbolistas. No juízo de Augusto de Campos, nossos simbolistas não passaram de epígonos do satanismo de Baudelaire e da musicalidade – a música antes de todas as coisas – à Verlaine.

Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens fazem parte daquele seleto grupo a que me referi no primeiro parágrafo deste trabalho. Eles são a matriz e a referência do movimento simbolista no Brasil e seu elo de ligação com o mundo, especialmente o da nossa língua, onde também merecem destaque, sempre tendo em mente o que se escreveu lá em cima, os portugueses Camilo Pessanha e Antônio Nobre.

Mas não se pode deixar de citar um garimpeiro de poetas, Andrade Muricy, que, em 1952, publicou, em três volumes, o Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. Foi graças a esse trabalho brilhante, presente em todas as bibliografias que tratam seriamente a literatura brasileira, que muitos poetas, até então no ostracismo, a maioria já morta, aliás, voltaram à vida literária. Cito um caso: Pedro Kilkerry (1885-1917), baiano, que mereceu do já citado Augusto de Campos um livro inteiro de ensaios: Re-Visão de Kilkerry. Cito outro: Maranhão Sobrinho, que mereceu do mesmo bom Augusto, em O Anticrítico, palavras que só um poeta escreveria sobre outro. O título do pequeno texto, um quase-poema, sintetiza tudo: “Stefânio Maranhão Mallarmé Sobrinho”.


(*) Ensaio publicado no livro Papéis velhos... roídos pela traça do símbolo, de Maranhão Sobrinho,
2ª edição, Manaus: Editora Valer, 1999.

Ilustração: fotografia de Maranhão Sobrinho – data e autor desconhecidos.