Amigos do Fingidor

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Sinto que o tempo abate sobre mim sua mão pesada

Jorge Bandeira


Permitam-me alterar meu estilo de escrita neste último lampejo de crítica teatral do ano que ora agoniza. Falarei como um narrador que teve um ano bom no Teatro, que assistiu boas peças e excelentes interpretações, esta com o ator Renato Borghi coroou meu ano de êxito, fechei bem esta safra 2010 de Teatro, aqui em Manaus. Lembro que ia assistir à palestra-espetáculo do Borghi sobre o Teatro Brasileiro, mas por uma questão de arcada dentária o Borghi não teve condições de apresentar seu trabalho no dia previsto, chegando com uma puta dor de dente em Manaus. No outro dia não pude assistir, levava minha Carolina, de 5 anos, para algum festejo natalino. Assisti, porém, a exibição do filme-documentário O rei da vela, no teatrinho do SESC, onde tenho gratas satisfações. Esse teatrinho deve ser mágico ou algo parecido, pois sempre nos revela surpresas tais que nem mesmo o majestoso Teatro Amazonas é páreo para essas revelações estéticas e teatrais. Uma delas foi este monólogo magistral intitulado Três cigarros e a última lasanha.

Em cena, o ator Renato Borghi, um mestre na arte da ilusão, nome que está amalgamado com a própria história de nosso Teatro, um ator que não basta em si mesmo, reinventando-se a cada projeto – acho até que ele pode ser o nosso Benjamin Button, novíssimo a cada ano que passa. Deve ser um alquimista perdido em nossa ribalta, descobridor de uma pedra filosofal do teatro, e que, gentilmente, passa a fórmula desse rejuvenescimento para a gente. Ouso dizer, também, Borghi não precisa apelar para nada, tudo é feito de uma forma tão natural e bonita, arte mesmo, nada que lembre o teatro romano em sua fase de degeneração.

A peça, escrita pelo Fernando Bonassi(de outro petardo teatral, o monólogo Entre ferragens) e pelo Victor Navas, recebeu premiação na terra onde “deus é fidel”. Com todo o merecimento, não tenho dúvidas. Do que assisti em Manaus, vou ter sempre em minhas reminiscências o alto poder de sedução de Renato Borghi, de sua precisão como ator, da força que imprime em seu trabalho, de uma voz que ele trata como uma partner, que a carrega para onde quer, e que nos leva ao ponto precioso da reflexão num texto que é um libelo sobre a determinação do homem num mundo que teima pelo absurdo e burocratização de situações extremas, condutoras aos níveis de sufocamento dos seres humanos. Absurdo? Não creio. Por mais que o texto de Bonassi e Navas remeta a algumas situações da dramaturgia de um Ionesco (lembro de um sobre a mecânica absurda de se preparar um ovo), ele tem um charme, um propósito claro em sua dinâmica. É um texto que me impressiona pela simplicidade e clareza dentro do caos em que a personagem, talvez com um transtorno obsessivo compulsivo, se encontra ao perder, de forma inexplicável, sua mão, e toda situação que advém desse fato deveras caótico, e que só torna a situação existencial dele inusitada, mas plausível de acontecer com qualquer um de nós.

Por isso estamos tão próximos dele, de suas loucuras, de seus surtos, de suas alegrias e decepções com este mundo, com as pessoas que o cercam, com as autoridades médicas do corpo multidisciplinar, com os transeuntes. Eis um homem que leva agora sua “mão de Eurídice” artificial, um marionete da circunstância da vida. Essa mão que o faz refletir sobre sua vida, seus amores, e que nós, espectadores destes 45 minutos de humor e sarcasmo, nesta tragicomédia, nos alentamos e acalentamos, sentimos compaixão por este homem maneta, por este ser subtraído de sua completude corporal.

Renato Borghi nos brinda com um retrato desse personagem em 3D, sim, pois consegue nos transmitir a integridade de sua personagem, sua verbalização, o que se passa em sua mente, seu relato inverossímil que se torna verossímil, a expressão de sua emoção, sua reflexão e suas decisões, oscilantes ou não. Tudo que o espectador precisa para pulsar junto com ele, carregar também esse fardo pesado, viver com ele e por ele. Tudo isso com rigor e meticulosidade teatral, mas não um Teatro da assepsia da técnica, mas com um equilíbrio, como o definido por Denis Diderot em seu conhecido artigo “O Paradoxo do Comediante”. Uma balança fiel entre a razão e a emoção.

Renato Borghi é um mestre, usa com propriedade o monólogo interior, ele, um dos mentores do Teatro Oficina, atravessa sem pressa o mar de Stanislavski, não tem receio das ondas perigosas da interpretação. Como é fascinante assistir a um trabalho com um ator que sabe das nuances necessárias para fazer com que embarquemos no jogo lúdico chamado Teatro. Borghi canaliza sua emoção com apuro, o texto é falado e nada se perde, mesmo nos sussurros eventuais do personagem.

A iluminação do espetáculo cristaliza as passagens de forma eficaz, e é feita para induzir ao espectador que algo na persona, no ânimo e na emoção do personagem alterou-se, trabalho que a direção imprimiu como marca indelével e que funciona do início ao fim da peça, incluindo aí as marcas pontuais e geométricas da movimentação do infeliz personagem que perdeu a mão. E de absurdo em absurdo o personagem também lembra um clown urbanoide, um ser engolido pela cidade em sua loucura citadina.

A sonoplastia de extremo bom gosto é outro aperitivo para se acompanhar com essa lasanha teatral, colocar “Morphine”, do saudoso Mark Sandman, é assegurar coisas agradáveis em níveis de audição. O som da cafeteira nos faz tomar o café junto com o maneta carismático, de conversar no restaurante e dizer: quando você volta pra Manaus, meu chapa, vai demorar muito? Você precisa dar uma maõzinha pra gente aqui nesta cidade encravada no meio da Floresta Amazônica. Obrigado Borghi, promíscuos e embaixada do Teatro brasileiro, terminei o ano assistindo a um grande Teatro.

Manaus, 30 de dezembro de 2010

Três cigarros e a última lasanha

Dramaturgia de Fernando Bonassi e Victor Navas.
Direção de Debora Dubois.
Com Renato Borghi.
Cenário e Figurino: Cyro Del Nero e Debora Dubois.
Sonoplastia: Cacá Machado.
Iluminação de Alessandra Domingues e Marcos Franja.
Duração: 45 minutos.
Apresentada em Manaus, no Teatro do SESC, nos dias 18 e 19 de dezembro de 2010.

Ilustração: Renato Borghi em cena de Três cigarros... Foto de Jorge Bandeira.
Obs: o título foi tomado emprestado de um poema de Drummond.