Amigos do Fingidor

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Mar morto, de Jorge Amado, uma análise 12/14

Zemaria Pinto

3) Personagens

O professor francês Jean Roche, em alentado ensaio sobre a estrutura formal da obra de Jorge Amado, contou cento e treze personagens em Mar Morto, dos quais oitenta e um são denominados e trinta e dois são anônimos[1]. Ele referia-se a personagens humanos. É claro que em nosso estudo não desceremos a esse nível de detalhe, atendo-nos apenas aos personagens citados no resumo da fábula, isto é, aqueles que influenciam de fato na trama.

Guma – É o protagonista, personagem em torno do qual gira toda a trama. Já observamos anteriormente o caráter épico de Guma, capaz de realizar feitos notáveis, incomuns. Mas Guma não é apenas um poço de bondade. Há nele, além de um determinismo fatalista, a certeza da morte prematura, um comportamento instintivo, típico dos personagens naturalistas. Convivem, num mesmo personagem, o moço bondoso, que arrisca a própria vida para salvar a de um semelhante, e o canalha, capaz de fazer sexo com a mulher de seu melhor amigo na sala de casa, enquanto a esposa, doente, dorme no quarto ao lado. Esta é a forma como o autor humaniza sua criação. Guma é apenas um homem comum do cais da Bahia.

Tespestades – Numa obra sem vilões, onde todos, com a exceção citada do próprio Guma e da mulata Esmeralda, parecem comportar-se segundo o mais rigoroso manual de boas maneiras, são as tempestades o grande antagonista. O leitor não deve estranhar esta classificação, pois um fenômeno natural, desde que desempenhe uma função dentro da trama, pode ser classificado também como personagem, apesar deste vocábulo, em sua gênese, evocar pessoas e não objetos, animais ou fenômenos naturais.           

Observe, leitor, quantas vezes o nosso antagonista age. O capítulo inicial, apropriadamente denominado “Tempestade”, já nos coloca em contato direto com ele: ficamos sabendo que ele ceifou a vida de Raimundo e de Jacques. Depois ficamos sabendo que numa noite de tempestade morreu o pai de Guma, Frederico. Guma torna-se um herói do cais ao vencê-lo no episódio do resgate do navio “Canavieiras”. E entre tantos outros episódios, a tempestade vence o herói ao fazer naufragar o “Valente” e, por fim, o “Paquete Voador”.

O Mar – Também personagem importante, o mar é aliado. É o mar que proporciona trabalho e alimento. O mar é a casa de Dona Janaína e é a última morada dos marinheiros afogados: “é doce morrer no mar...”

Iemanjá – A senhora dos cinco nomes pontua toda a narrativa. Sua presença constante, aliás, dá uma outra dimensão à narrativa, livrando-a das amarras de um naturalismo caduco. Iemanjá é o transcendente, o suprarreal, a fecundidade e o desejo. Em várias ocasiões, o narrador a associa à mãe-esposa, numa clara referência psicanalítica. Chamada também de Janaína, Dona Maria, Inaê e Princesa de Aiocá, poderíamos acrescentar-lhe um sexto nome: Iara, pois não é assim que nós, amazônidas, denominamos a mãe-d’água?

Lívia – Mulher de Guma, não nos reserva nenhuma surpresa. Seu comportamento é exemplarmente linear. Até mesmo a decisão de substituir Guma na direção do saveiro torna-se óbvia, pois é uma forma de manter-se ligada a ele e, sobretudo, uma garantia de fidelidade!

Francisco – Personagem cativante, especialmente porque o narrador tem por ele imensa simpatia. Não seria arriscado dizer que é a principal fonte das histórias narradas. Inúmeras vezes a narrativa é conduzida sob sua perspectiva. No capítulo “Rapto de Lívia”, o narrador dá uma pista:

Muitos anos depois um homem (um velho do qual ninguém mais sabia a idade) contava que não só as noites de lua eram para o amor.

O velho Francisco, o único em todo o cais que vira Iemanjá em pessoa, é o símbolo da sabedoria popular.

Chico Tristeza – Pouco aparece na trama, mas pontua toda a narrativa. Simboliza o marinheiro que não tem amarras em nenhum porto. É homem do mundo. Aprendeu outras línguas e conta histórias de outros portos.

Rosa Palmeirão – Personagem um tanto inverossímil, mas nem por isso menos simpática. Mulher valente, famosa pelas confusões em que se meteu, apaixona-se por Guma, que tinha idade para ser seu filho. Com um espírito parecido ao de Chico Tristeza, entretanto, ela parte de volta para o mundo. Ao final, cumprindo antiga promessa, retorna para ser “avó” do filho de Guma. Com a morte deste, passa a ser parceira de Lívia na direção do saveiro.

Mãe de Guma – Simbolicamente inominada, a mãe de Guma tem pouca participação na trama. Seu único encontro com o filho, entretanto, é perturbador: o menino passa a vê-la como um objeto de desejo sexual. Não lhe importava a condição de mãe, que para ele, àquela altura da vida, já não fazia falta. Guma queria, sim, a prostituta, a mulher que poderia lhe dar prazer físico. Durante muitos anos, Guma procura por essa mulher nas mulheres com quem se relaciona, especialmente com Rosa Palmeirão. Somente após conhecer Lívia, ele se liberta dessa obsessão.

D. Dulce   Professora, D. Dulce é uma personagem típica. Idealista, espera que aconteça um milagre, que “virá assim, de repente, como uma tempestade”. Ela mesma não sabe o que é esse milagre que mudará a vida da gente do cais. Ao final da narrativa, ficamos sabendo que o milagre é a própria luta do povo, a resistência contra o determinismo, a busca pela mudança de melhores condições de vida. Não está dito em nenhum lugar da narrativa, mas o milagre pelo qual D. Dulce espera com tanto ansiedade, sem saber exatamente o que é, é a revolução socialista.

Dr. Rodrigo – Juntamente com D. Dulce, Dr. Rodrigo representa o mundo exterior, a influência externa na tomada de consciência do povo do cais. Médico e poeta, embora confessadamente medíocre, Rodrigo representa a classe média associada ao proletariado do cais. Suas ações são sempre dignas e altruístas, mesmo quando faz abortos nas mulheres do cais. “É justo que muitas delas não queiram mais ter filhos”, ele justifica, antecipando em mais de meio século uma discussão ainda hoje não resolvida.

Frederico – Pai de Guma, não exerce nenhuma influência direta no filho. Aventureiro e mulherengo, entretanto, numa perspectiva naturalista, Guma poderia ter-lhe herdado os instintos que o levam a trair Rufino com a mulata Esmeralda. Morre numa noite de tempestade, após salvar Francisco, seu irmão.

Rodolfo – Irmão de Lívia por parte de pai, amigo de infância de Guma, é o malandro típico. Vive de pequenos expedientes, mas o seu pudor em convidar Guma para o negócio do contrabando mostra que no fundo ele tem admiração pelo caráter até então ilibado do cunhado.

João Caçula – Credor de Guma, a quem vendeu o “Paquete Voador” após o naufrágio do “Valente”, é de uma paciência inverossímil. Se Guma não tem como pagá-lo, ele não só entende como ainda teoriza a respeito das dificuldades econômicas que todos atravessavam.

Rufino e Esmeralda – Rufino é o melhor amigo de Guma. É um personagem de apoio a este. Desde as primeiras brigas de adolescentes, os dois estão sempre juntos. Ao conhecer Esmeralda, passam a morar praticamente juntos, parede a parede. Essa proximidade, entretanto, acaba por revelar-se malfazeja, pois Esmeralda passa a seduzir Guma, que não resiste à tentação, traindo o amigo.

Manuel e Maria Clara – Idealizados, representam a própria felicidade conjugal. Em nenhum momento aparecem separados. A ação de ambos é carregada de sensualidade e lirismo.

Godofredo e Leôncio – De pouca participação na trama, são os únicos personagens a quem o narrador refere-se claramente como de má índole. Godofredo aparece num momento de fraqueza, implorando ajuda para salvar os filhos, passageiros do “Canavieiras”. A aparição de Leôncio, por outro lado, perturba o velho Francisco, mas ao leitor não é informado o motivo. Terá ele infringido a “lei do cais”?

Toufick, F. Murad e Antônio – representam o que poderíamos chamar de “núcleo do contrabando”. F. Murad é o chefão, Toufick, seu braço direito. Antônio, filho de F. Murad, é estudante de direito e boêmio, com veleidades literárias.

Tios de Lívia – donos de uma quitanda na “cidade alta”, pretendiam que Lívia fizesse um bom casamento que lhes garantisse uma velhice tranquila. Por isso se opõem ao casamento com o marinheiro Guma, forçado a raptá-la para criar uma situação de fato. Não desistem, entretanto, de levá-la para longe do mar. Estão prestes a consegui-lo quando acontece a tragédia de Guma.

 
Ilustrações: capa da edição brasileira, patrocinada, de 2000; capa da edição chinesa, de 1987.



[1] ROCHE, Jean. Jorge bem/mal Amado. Tradução: Liliane Barthod, São Paulo: Cultrix, 1988.