Amigos do Fingidor

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Declínio

Inácio Oliveira


Os historiadores modernos possuem uma controversa teoria para explicar o declínio do Império Romano no século V. Acredita-se que toda a água encanada utilizada pelos romanos escorria por tubulações feitas de chumbo, e hoje sabemos que um organismo em contato com o chumbo acaba se enfraquecendo e se tornando vulnerável a uma série de doenças. Eu sei disso por que sou biomédica, fiz especialização em infectologia e trabalhei em diversas clínicas de diagnóstico de doenças. Via casos assim todos os dias: pessoas contaminadas com vírus, bactérias e protozoários; por meio de alimentos, de água, de fezes, de insetos, de animais domésticos, de metais pesados, e até do ar, enfim, as pessoas se contaminam com qualquer coisa. Como eu ia dizendo, os romanos expostos por um longo tempo ao chumbo acabaram adquirindo uma série de doenças, seus soldados se tornaram cada vez mais fracos e seus exércitos ficaram indefesos, as crianças que nasciam já vinham com sua carga genética danificada pelo chumbo. O Império Romano não foi derrubado pelas invasões bárbaras e sim pelo chumbo.

Vocês podem achar que esta história de Império Romano não tem nada a ver com a minha história, que isto não passa de devaneios de uma senhora de idade. Mas eu estou falando do Império Romano porque é interessante notar como uma das forças mais poderosas da história da humanidade ruiu sob suas tubulações de água encanada; é interessante notar como aquilo que nos destrói pode estar dentro de nós, em silêncio, imperceptível. E principalmente estou falando do Império Romano porque foi a partir da sua história que eu tirei a minha vingança. Vocês saberão porquê.

Fui casada durante vinte anos com Marcelo Augusto. Como todos sabem Marcelo Augusto sempre foi um homem exemplar: um homem honesto e justo, íntegro e incorruptível, um exemplo de advogado, de filho, de marido, de amigo e de cidadão, um exemplo de ser humano. Estou usando as palavras proferidas por um amigo dele que fez o discurso no dia do seu enterro enquanto seu corpo descia para alimentar os vermes. Acontece que chegamos a uma idade em que a máscara, assim como a pele firme em nosso rosto, começa a ruir e a verdade vem à tona, a inevitável verdade sobre aquilo que somos. Por isso quero, antes de morrer, revelar toda a verdade sobre Marcelo Augusto e sobre nosso casamento. Nosso casamento nunca foi feliz como todos supunham e Marcelo Augusto nunca foi um homem honesto e justo, íntegro e incorruptível, nem um exemplo de advogado, de filho, de marido, de amigo ou de cidadão; antes, foi um ser humano execrável, que mereceu o destino que teve.

Conheci Marcelo Augusto no último ano da faculdade, eu fazia residência no hospital universitário e ele era um vagabundo maconheiro que se disfarçava de revolucionário do movimento estudantil, mas, além disso, era um homem muito bonito, sagaz e ardiloso. Sabia usar todas as suas relações em benefício próprio, nenhum ato seu era espontâneo ou gratuito, e assim ele conseguia convencer qualquer pessoa a fazer qualquer coisa. Eu era uma jovem biomédica ingênua e presunçosa, sabia tudo a respeito do corpo humano, mas era incapaz de perceber o que é um homem em sua essência. E naquela época o fascínio que Marcelo Augusto causou em mim foi instantâneo, eu me apaixonei. 

Formamo-nos no mesmo ano e casamos um ano depois. Marcelo Augusto conseguiu um emprego público como advogado devido suas influências políticas. Daí nunca parou de crescer na carreira pública, um ano depois já trabalhava na Defensoria. Eu me especializei, trabalhei em diversos hospitais, tínhamos uma vida confortável. Porém depois de algum tempo, quando chega aquele inevitável momento em que a paixão acaba, comecei a perceber algo estranho em Marcelo Augusto, algo que sempre houve e que eu não notara até então. Ele me dava sempre a impressão de estar falando uma coisa e pensando outra, o tipo de pessoa que quanto mais se convive menos se sabe a respeito.

Depois do nosso casamento tive a oportunidade de cursar mestrado na Espanha, o grande sonho da minha vida, eu poderia ter sido uma pesquisadora de prestígio, mas Marcelo Augusto como sempre me convenceu a abdicar do meu sonho. Eu deveria ficar e cuidar de “nossas coisas”, da nossa casa e da pequena fortuna que ele acumulava ano após ano; na verdade ele queria alguém que cuidasse dele mesmo, que mantivesse sua vida em ordem, que fizesse pose com ele nos jantares chatíssimos para os quais era convidado, portanto eu era a pessoa ideal, uma mulher bonita, de boa família, inteligente e elegante. No fundo eu sabia que Marcelo Augusto jamais gostou de mim e isso ficou claro com o tempo: ele me tratava com impaciência, com desprezo e praticamente não falava comigo quando estávamos sozinhos em casa. Nos lugares onde íamos e na frente de outras pessoas, até mesmo de estranhos, ele era atencioso e gentil comigo, sorria e me chamava de querida. Sempre odiei, desde menina, que me chamassem de querida.

Meu casamento se revelava um inferno, porém Marcelo Augusto ficava cada vez mais rico e o dinheiro dele era meu também, nunca deixei de pensar assim e isso me deu forças para continuar sorrindo e fazendo pose ao seu lado. Quanto mais ele me fizesse sofrer mais dinheiro ele teria que ganhar. Pois eu gastava de acordo com o meu humor; quanto mais angustiada eu ficava maior seria a fatura do cartão de crédito. Tudo passou a me entediar, não tinha mais disposição para trabalhar. Eu trabalhava no Instituto de Hematologia, não suportava ficar olhando para o sangue das pessoas doentes distribuído em diversas lâminas e submetê-los à cálculos e contagens incompreensíveis para descobrir quais eram suas doenças, em muitas lâminas as células do câncer brilhavam no microscópio e eu podia saber se era leucemia, câncer do útero, do pulmão, enfim, se estava no inicio ou avançado, e isso me deprimia. Gostaria que em uma daquelas lâminas com células de câncer brilhando o sangue fosse de Marcelo Augusto, ou então chegar em casa e ver o seu sangue se coagulando ao redor do seu corpo por algum motivo que o destino tornara trágico.

Um dia, por uma discussão domestica qualquer, Marcelo Augusto me empurrou contra a cerâmica da cozinha, eu cai no chão, humilhada. Pensamentos terríveis passaram pela minha cabeça, poderia ter pego um das facas sobre a pia e o esfaqueado enquanto ele virava as costas para uma mulher que ele tornara infeliz, jogada no chão. Nosso casamento havia se tornado uma coisa beligerante. Mesmo sem evidências passei a desconfiar que Marcelo Augusto tivesse uma amante, não havia outro motivo para ele me humilhar daquela forma. Parei de trabalhar e me concentrei em monitorar Marcelo Augusto secretamente, ele era obcecado pelo trabalho que consistia em fraudar contratos e licitações e defender políticos corruptos, se ele tivesse uma amante não seria do seu meio. Após um tempo de espionagem descartei a hipótese da amante, um homem que tem uma amante não possui a expressão avara e entediada que Marcelo Augusto tinha.

Sua rotina consistia de passadas rápidas no fórum, encontros intermináveis com políticos e empresários e terminava seu dia enfurnado no seu escritório nos altos de um prédio. No escritório Marcelo Augusto recebia muitos clientes, sempre à tarde. Havia dias em que Marcelo Augusto trabalhava até altas horas, isso não me incomodava, eu poderia aproveitar minha solidão, já que mesmo presente ele não me faria companhia. Passei a fazer basicamente duas coisas da minha vida: comer e comprar. Comia e me sentia gorda, ficava deprimida e por isso saía para fazer compras e depois dava vontade de comer, era um ciclo vicioso.

Em uma tarde depois de comprar um chapéu que certamente eu nunca usaria senti vontade de visitar o escritório de Marcelo Augusto. Não sei por que senti essa vontade, eu odiava aquele escritório e sua decoração esnobe. A secretária devia ter saído, pois a recepção estava vazia. A tarde caia e o Hall estava deserto, senti um calafrio, uma espécie de medo, como se algo terrível fosse me acontecer. A porta estava entreaberta, entrei sorrateira, o escritório era espaçoso de dois pés: havia uma mesa de centro com uma pequena escultura simbolizando a justiça, piso acarpetado, dois quadros horrendos na parede, uma massa acrílica disforme, pretensamente arte moderna, sofás em couro de tom marrom, duas estantes embutidas com livros de capa dura completavam a decoração, na parte superior havia sua mesa com o computador, muitos papeis, uma cadeira executiva, grande demais para uma única pessoa, em uma parte oculta do escritório havia um closet onde Marcelo Augusto dispunha de diversos ternos, de varias marcas e cortes que ele trocava durante o dia de acordo com cada ocasião, dentro do closet havia um divã onde Marcelo Augusto descansava todos os dias. Caminhei silenciosamente pelo escritório que vazio parecia maior, pequenos ruídos vinham de dentro do closet, me aproximei e afastei lentamente a porta do closet de modo que dava pra ver apenas uma parte do divã: Marcelo Augusto estava nu de joelhos sobre o divã, parecia um leitão, afastei mais um pouco a porta e foi possível ver um corpo de mulher com seios enormes, um ser andrógino, dúbio, feito delicadeza e brutalidade. Marcelo Augusto estava sendo sodomizado por um travesti.

Tudo ali parecia ter sido arquitetado de uma forma diabólica para que eu jamais esquecesse qualquer detalhe, e também jamais fosse possível contar nada daquilo para ninguém nem mesmo para minha melhor amiga, se eu tivesse uma. Observei aquela cena por uma fração de segundos, fechei os olhos na tentativa inútil de evitar que aquilo se gravasse na minha memória e me destruísse. Naquele momento eu sabia de duas coisas: eu jamais esqueceria o que havia visto e jamais contaria aquilo para ninguém. Saí daquele escritório como se sai de um pesadelo, a recepção continuava vazia, não havia ninguém em todo o andar e mesmo se houvesse ninguém me veria, pois naquele momento eu era lívida e transparente. Não lembro como cheguei em casa, não lembro como dormi naquela noite, e é difícil lembrar como os dias se sucederam depois daquilo. Os dias simplesmente se sucedem, indiferentes.

É difícil acreditar, mas mesmo morando na mesma casa eu nunca mais olhei nos olhos de Marcelo Augusto. Eu havia me tornado uma espécie de zumbi, engordara e me entediava com tudo, deixei até mesmo de fazer compras. Essa indiferença não incomodou Marcelo Augusto, eu não saía de casa, não fazia nada, para ele estava tudo bem. Eu existia apenas para ele ser um homem casado, um homem de família. Eu não tinha forças para me separar, não me sentia capaz de falar daquilo com ninguém. Tudo em minha vida se tornara incomunicável, eu não teria feito o que fiz se não fosse por nojo, se não fosse por asco. Ele chegava cada vez mais tarde em casa, eu já estava dormindo mas quando ele deitava comigo na cama eu não conseguia mais dormir, sentia um frio no estomago, uma vontade de vomitar. Marcelo Augusto passava o braço sobre o meu corpo e dormia, eu ficava imaginando ele, o único homem que eu amara, com travestis e outros homens em todas as formas possíveis de perversões.

Eu só queria nunca mais ter que olhar para Marcelo Augusto, nunca mais ter que ver ele tirar a roupa perto de mim para eu não ter que lembrar daquela cena, nunca mais ficar a noite toda acordada com o braço dele sobre o meu corpo, nunca mais ouvir ele me chamar de querida. Ele poderia sofrer um ataque fulminante do coração, morte súbita, câncer, acidente de carro, cair da escada, ser assassinado por um inimigo, ser estrangulado por um michê, mas essas coisas só acontecem com quem não precisa acontecer.

Sempre dormia pela manhã depois que Marcelo Augusto saía; em uma dessas manhãs eu tive um sonho horrível. Sonhei que Marcelo Augusto me obrigava a fazer sexo oral nele enquanto ele era sodomizado por um homem negro. Foi nesta manhã que eu comecei a urdir meu plano, uma mulher não podia dormir pela manhã e sonhar uma coisa dessas.

Eu ainda tinha em casa alguns materiais de laboratório; consegui destilar pequenas quantidades de chumbo; como Marcelo Augusto não almoçava nem jantava em casa, apenas tomava café, o processo seria lento; seria melhor assim, não correria o risco de ninguém desconfiar. Eu mesma preparava o café para Marcelo Augusto, como eu não tomava café seria fácil, eu havia preparado uma quantidade exata de chumbo para cada dia que seria adicionado ao café enquanto eu o preparava. De acordo com os meus cálculos levaria de três a seis meses para que o chumbo afetasse o seu sistema hematopoiético, a produção de células do seu corpo seria danificada produzindo células com deficiência e até mesmo nocivas, seu sistema imunológico se enfraqueceria ou se fortaleceria demasiadamente e nas duas condições sua saúde se deterioraria e como ele era negligente com a saúde morreria em menos de dois anos sem ninguém suspeitar de nada.

Enquanto Marcelo Augusto tomava banho pela manhã, sua pasta inseparável estava sobre a penteadeira no quarto, estava entreaberta, de um bolso pendia uma discreta etiqueta de uma marca famosa de lingerie, puxei-a para fora, era um conjunto completo: calcinha, sutiã e cinta-liga de um vermelho berrante. Coloquei-a de volta sem que ele percebesse. Agora eu sabia, ele não daria aquela lingerie para nenhuma mulher, ele mesmo a usaria debaixo dos ternos caros e bem cortados que ele possuía. Enquanto cumprimentasse seus clientes e sócios com aperto de mão firme e voz empostada; como quem diz você pode confiar em mim, ele sentiria por baixo do terno o fio dental da lingerie.

Ao fim de três meses sendo submetido à dieta de chumbo, Marcelo Augusto começou a sentir os primeiros sintomas: sentia náuseas, dores de cabeça, dores de estomago, estava cada vez mais estressado, se aborrecia com qualquer coisa, certa manhã acordou vomitando. Eu, solícita e tolerante, cuidava dele. Todas as manhãs Marcelo Augusto tomava seu café, sorvia todo o liquido escuro da xícara como um viciado em chumbo. A saúde de Marcelo Augusto piorava progressivamente, ele não conseguia mais trabalhar como antes, esquecia com facilidade das coisas, brigou com os sócios. Seus negócios ilícitos com o governo estavam sendo investigados, emagrecera rapidamente, suspeitei que ele estivesse sendo chantageado por um de seus michês, estava sempre à beira de um ataque. Eu aumentei a dosagem de chumbo.

Relutante, Marcelo Augusto procurou um médico amigo meu que garantiu que seu estado era grave. Fez uma série de exames sem chegar a nenhuma diagnóstico preciso, consultou outros especialistas, sem sucesso. Durante algum tempo, as coisas pioraram terrivelmente. Marcelo Augusto tinha sono intranquilo, passava mal durante a noite, eu cuidava dele com prazer. Eu sabia que tudo aquilo iria passar, em breve eu estaria livre; com sua morte, as investigações sobre ele seriam esquecidas e eu poderia aproveitar seu dinheiro ilícito. Enquanto ele agonizava imaginava os lugares que eu, uma viúva, conheceria, faria compras em todos os shoppings do mundo, no fim a humilhação de uma vida inteira seria reparada, era só uma questão de tempo.

Marcelo Augusto só parou de tomar seu café com chumbo quando precisou ser internado, parecia ter envelhecido muitos anos nos últimos meses. Fiquei com ele todos os dias no hospital para constatar seu padecimento, ele perdera a arrogância que tinha, uma candura envolvia seu sofrimento. Por um momento cheguei a pensar que eu o amava, mas foi só por um momento. Nos últimos dias ele parecia querer me dizer alguma coisa, nem mesmo ali me sentia capaz de lhe revelar toda a verdade que ele e eu escondíamos. Eu queria que ele morresse como um homem justo e honesto, integro e incorruptível, afinal eu seria a viúva desse homem. A morte nos daria uma dignidade que nós não tínhamos.

Tudo ocorreu como eu planejara, Marcelo Augusto foi enterrado com todas as honrarias, as investigações sobre ele foram abafadas, morria um homem bom. A primeira coisa que fiz foi vender a casa e viajar mundo afora. Mas não importava o lugar onde eu estivesse, toda vez que dormia aquela cena grotesca invadia meus sonhos, eu procurava me manter acordada o máximo possível. Com o tempo, as bebidas, as drogas e os calmantes já não eram suficientes, mesmo acordada eu via Marcelo Augusto de joelhos no divã; só que agora ele sabia que eu o estava olhando, então ele sorria para mim com um prazer hediondo, obsceno.  Já não consigo mais viver com isso, por isso escrevi este relato.