(Discurso do presidente do Conselho Estadual de Cultura do Estado do Amazonas,
Sr. Jorge Tufic, pronunciado na abertura do I Encontro Cultural da Amazônia,
promovido pela SCA, de 20 a 28 de agosto/88).
Senhores escritores da Amazônia, sejam bem-vindos ao Conselho Estadual de Cultura. É com imenso prazer que atendemos ao pedido e às recomendações da Superintendência Cultural do Amazonas, propondo a este Encontro, à guisa de tema, o papel do escritor contemporâneo da Amazônia.
Assim, perguntamos: de que modo poderão as Amazônias conhecer-se para melhor integrar-se em sua própria defesa, enquanto preocupação daqueles que a vislumbram ou intensificam na trama de um romance, na metodologia de um ensaio ou na metáfora de um poema? O que, afinal, se conhece deste fenômeno, numa visão conjunta de sua história, ou de quantos deslumbramentos se tenham convertido na exploração de motivos tirados de sua paisagem, sem excluir o exótico e o pitoresco? Podemos, ainda, considerar exauridos os ciclos econômicos da região, o diálogo de suas grandezas naturais, os episódios de guerra, a ecologia, o problema das populações autóctones e as atmosferas localizadas, com larga tematização e quase nenhum empenho em aprofundar ou renovar os instrumentos da língua e da linguagem?
Sejam quais forem as respostas a tais perguntas, o certo é que é chegado o momento da união, da confederação e dos encontros periódicos, nos quais, sem dúvida, a simples troca de experiências e objetos culturais entre as várias Amazônias compreendidas pelos geógrafos, historiadores, antropólogos, observadores e estudiosos, possa conduzir ao núcleo germinal de uma única Amazônia, como resultado da plena consciência de suas origens comuns, em dez mil anos de lutas e caldeamentos. Se podemos afirmar, em abono a essa tese, que os antepassados ameríncolas perderam seus domínios e sua identidade em quatro estágios diferentes, mas sucessivos – derrota militar, falta de resistência imunológica, derrota pela fome e pelo escravismo e derrota étnico-cultural, segundo o historiador Antônio Loureiro, a mais terrível de todas, – onde nos colocarmos, hoje, frente aos países ricos que nos infligem derrotas semelhantes na taxa de juros e no endividamento externo, senão como vítimas de um novo e definitivo genocídio? Diante dessa realidade, também se coloca o escritor amazônico.
Não é, pois, à toa que tornamos a nos voltar, cada vez mais assustados, para as rupturas havidas no lento e diferenciado processo da nossa colonização, que nos fizera herdeiros de uma cultura imposta, zelosa em manter aqueles povos nativos subalternos do esquecimento e do massacre, de cuja sabença nada se sabe, mas de cujo destino nos tornamos repetidores. Lemos tudo pelo avesso nas cores desse arco-íris de poeira e solidão. Somos a última abertura de um ciclo a fechar-se. Estamos completamente vencidos pelas diferenças que estabelecemos e cultivamos.
Amazônias diferentes e tão semelhantes, aqui se encontram. Irmanadas, sobretudo por aquele “algo extraño y triste” de que nos falara Humboldt. Dez mil anos de solidão – resumidos ou “tensificados” nos cem anos do romance de Gabriel Garcia Marques – instalaram no ar e nos seres a nostalgia de um confronto impossível, mas onde a retórica e o fantástico levam vantagem. Deste modo também, as mitologias do espaço construído passaram o rolo compressor nas fábulas ingênuas, nas “bíblias” e no lendário dos primitivos habitantes destas terras e destes rios. A pólvora, o fio da espada e a racionalidade evangelizadora conseguiram, finalmente, dizimar os guardadores desse universo mágico. Todavia, e por isso mesmo, “algo extraño y triste”, ficou. O próprio Amazonas, na comparação de Santos Chocano, ao vir das Cordilheiras, não é mais que “a silenciosa lágrima de um rio.”
Antes e durante esse longo período, nada consta, se não esparsa e raramente, tenham as tribos indígenas da Amazônia se unido e se levantado contra os invasores de seus territórios. Nômades e livres, elas preferem se aliar ao invasor e dão a entender, claramente, que a terra não era de ninguém. Hoje, após tantos conflitos e divisões, quando as sociedades tribais praticamente se reduzem, se extinguem ou se dispersam diante do avanço das máquinas e da usura pelas jazidas de minério, as diversas Amazônias já formam, como partes de um todo, o esboço de uma complexa mas única nacionalidade. Os pobres se entendem. Pelo menos deveriam entender-se. Senão essa mistura de raças que vai do tribal ao social, do social ao nacional e deste ao continental e universal, não teria sentido histórico. Este seria mais um item que parece merecer a nossa reflexão. Tanto mais quando fomos o cenário monumental para onde acorreram as primeiras levas que contribuíram para a formação do Homem Amazônico. Elas já traziam consigo o fogo e os instrumentos líticos, embora aqui já estivessem, desde muito, as curiosas edificações e canoas transformadoras, depois do terceiro cataclismo; os primeiros animais, peixes, aves, e o grande mistério que nos dá notícia de uma linguagem perdida. A linguagem que devemos perseguir.
Nada disto, senhores escritores da Amazônia, já foi ou estará sendo feito ou decifrado. A esfinge prossegue olhando para nós, donos que somos de um código refratário ao mergulho e ao vôo que lhe habitam os arredores. Ainda não dispomos, sequer, de mínima parte que seja desse belo compêndio de iniciação, em termos de linguagem. A dimensão orgânica da Amazônia, as vísceras e os acordes de sua extensão mítica, continuam à espera de nós, poetas, romancistas, filósofos, antropólogos, estudiosos, contudo envolvidos nos aspectos exteriores da fábula. Falamos em seu tamanho, em sua altura e comprimento, mas esquecemos a sua alma.
Aqui estamos, entretanto, para sabê-la no contexto de sua totalidade. Suas dimensões primárias já parecem delineadas. Falta-nos, assim, penetrar as suas dimensões extraordinárias, as quais também se relacionam com o papel do escritor, como sendo o principal de seus intérpretes.