Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Uma análise do Eu – 8/13

Zemaria Pinto



Estilo de época: As cismas do destino – Assim como fizemos com o tema e os motivos, vamos procurar definir o estilo de época predominante nos poemas escritos entre 1906 e 1912, essência do Eu, a partir da análise de um dos poemas mais marcantes de Augusto dos Anjos: As cismas do destino. Dividido em quatro partes, composto de 420 decassílabos, foi publicado pela primeira vez em 1908. Leia-o. Melhor: releia-o. Note que esse poema iria ecoar em Monólogo de uma sombra e em Os doentes, escritos bem depois. Para facilitar o acompanhamento da análise, numere as 105 estrofes.

O “eu lírico” anda pela noite do Recife, rumo a uma casa funerária, a “casa do Agra”, a um velório, talvez. Ele pensa no destino, sobre o qual alguns crêem estar traçado desde antes de nascermos. Mas este destino deve ser entendido como o futuro. Para onde vou?, ele se pergunta, mas sua reflexão acaba por estender-se por sobre toda a humanidade. As imagens são simples e claras, porém a descrição parece exagerar a realidade: “assombrado com a minha sombra magra”; parece mesmo procurar deformá-la: “O calçamento... copiava a polidez de um crânio calvo”. Leia a terceira estrofe: 

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida! 

Observe o desenvolvimento das imagens: a sombra, que na primeira estrofe era magra, torna-se enorme, enchendo toda a ponte. E o “eu lírico” a vê como uma “pele de rinoceronte”, algo tão estranho, tão distante, estendida por sobre sua vida/ponte. A ponte, apesar de comprida, é finita. Assim como a vida.

Da quarta até a sétima estrofes, o “eu lírico” segue sua caminhada, envolto em seus pensamentos. Observe os elementos que se revelam nessas estrofes, a partir das expressões utilizadas: “ovo dos vícios animais”, “carvão da treva imensa”, “ar danado de doença”, “horda feroz de cães famintos”, “alma da cidade, profundamente lúbrica e revolta”, “berro da animalidade”. Essas combinações de palavras não se coadunam com a noite da capital pernambucana, mesmo há 90 anos atrás. Como o “eu lírico” percebe isso, então, senão através da deformação da realidade? E por que ele a deforma, senão para ver melhor o que não vê na superfície?

Da oitava estrofe até o fim da primeira parte, estrofe 28, temos uma sucessão de imagens que poderiam ser frutos de alucinações, mas que são apenas manifestações do estado de alma do “eu lírico”, feitas a partir da contemplação da paisagem noturna da cidade, mas não sem antes refletir sobre a função do escarro:  

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam! 

Na segunda parte, o “eu lírico” continua a perseguir explicações para aquilo que a ciência não explica - o incognoscível. Mas o que lhe alimenta a reflexão é a visão da cidade noturna, e do que seus olhos e sua mente captam: “esqueletos desarticulados”, “divindades malfazejas”, “a camisa vermelha dos incestos”, “o apetite necrófago da mosca”, “almas pigmeias”, ladrões, bêbados, prostitutas. Mas tudo, enfim, acaba com a morte, seja na cidade, seja no “Engenho”: 

Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!   

Repelindo a ideia de morte e desejando “fazer da parte abstrata do Universo” sua “morada equilibrada e firme”, o “eu lírico” é interrompido por uma “impressionadora voz interna”: o seu próprio destino.

Até aqui, leitor, podemos rejeitar qualquer aproximação do estilo de Augusto dos Anjos com qualquer daqueles estilos que o antecederam historicamente. Alguns historiadores ainda o situam como um simbolista tardio. Mas onde está o simbolismo nos poemas que analisamos? As cismas do destino, que é o nosso paradigma, não tem nada de simbolista. Recapitulemos: o “eu lírico” caminha pela cidade do Recife; inicia uma reflexão sobre o destino (ou o futuro), a partir do que ele observa na paisagem noturna; mas o que ele nos passa parece deformado, absurdo, grotesco; é assim que ele percebe a realidade; o único caminho vislumbrado é a morte; mas esta ele não aceita.

Na terceira parte do poema, o autor abre aspas para a expressão do Destino, da mesma forma como no Monólogo... as abrirá para a Sombra. São, por assim dizer, personagens dramáticos, que interferem com um nível de consciência bem superior ao do “eu lírico”. Observe que esse processo não tem nada de simbolista: num poema atrelado a essa estética, esses personagens seriam citados, mas não teriam ação, tampouco expressão verbal.

O Destino então lhe tira toda e qualquer esperança de entender o mundo, nem os “fenômenos alegres”, nem as “lágrimas hediondas”. Somente a dor é eterna. Para compreendê-la, ele, um mísero humano, teria que trazer em si toda a humanidade: 

Porque, para que a dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!  

 De certa forma, esse é o papel do poeta, melhor, é o papel do artista. Mas o Destino zomba do artista e enumera os fatos cotidianos que tornam impossível entender o mundo: leia, releia e leia mais uma vez, leitor, as estrofes 70 a 83. É um dos pontos mais altos da poesia brasileira. Lembremos algumas estrofes: 

A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;
(...)
As pálpebras inchadas da vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;
(...)
Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;
(...)
E, (conquanto contra isso ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
À morte desgraçada dos açougues... 

Na sequência da enumeração, o Destino ultraja o “eu lírico”: “poeta, feto malsão”, “última das criaturas inferiores”; para concluir, com desdém: 

Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo! 

Na última parte, o “eu lírico”, ainda sob o influxo das cismas do seu destino, reflete. O retorno à realidade cotidiana após aquela experiência é avassalador: “o mundo resignava-se invertido”. Então, de que valem as ciências se há tanto por compreender? Ao chegarmos ao fim da nossa ponte/vida, o que teremos avançado no entendimento do universo? 

O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios. 

Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psiquê no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!