Amigos do Fingidor

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Uma análise do Eu – 11/13

Zemaria Pinto


A expressão prosaica – contrapondo-se à linguagem forçadamente poética da poesia que os antecede, os modernistas buscam a simplicidade da expressão e, por conseguinte, o uso de uma linguagem mais próxima do falar cotidiano. Observe o poema Pronominais, de Oswald de Andrade (1890-1954), uma das principais figuras do movimento modernista: 

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido 

Mas o bom negro e o bom branco
da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro 

No estudo mais importante sobre a poesia de Augusto dos Anjos, Morte e vida nordestina, o poeta Ferreira Gullar anota cerca de três centenas de palavras e expressões corriqueiras encontradas na poesia de Augusto dos Anjos, demonstrando com isso “como ele se afastou do convencionalismo poético de sua época e como se aproxima da linguagem ‘prosaica’ da poesia pós-22”. Anotemos algumas dessas palavras, só para despertar no leitor a curiosidade de descobrir outras no mesmo padrão: antropofagia, atômico, anúncios, acesso de asma, bacalhaus, barriga, crédito, caspa, doença, debochada, esterco, Estado, ferrugem, fedor, gás, homicídio, imundície, lamparina, latifúndios, monopólio, neurótica, ovo, psicologia, processo, quiosque, raio x, suicídio, teta, urubu, vinagre. 

Há que se ressaltar também o aspecto gráfico, inusitado para a época, que por vezes Augusto dos Anjos utiliza. Observe a seguinte estrofe de Monólogo de uma sombra: 

É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s. 

A representação gráfica da letra s adquire uma força visual que passaria desapercebida se o poeta se limitasse a reproduzir o seu nome - esse. Observe agora os seguintes versos: 

(...) De cada ser, ex.: o homem e o ofídio, (Os doentes)

(...) Custa 1$200 ao lojista! (idem)

(...) Tenho 300 quilos no epigastro... (Tristezas de um quarto minguante)

(...) Desde que, 6a-feira, 3 de maio, (idem) 

Tudo muito prosaico, não? Pois bem, esta é uma das principais críticas que se faz a Augusto dos Anjos – o caráter prosaico de sua poesia. A crítica (paradoxalmente, modernista) toma como referência para analisar a poesia de Augusto dos Anjos não a produção que viria depois dele e que ele antecipava, mas sim aquela poesia essencialmente “poética” que se praticava antes dele. Cabe aqui uma discussão: o que é e o que não é poético? Existem palavras ou expressões poéticas? Por exemplo, a palavra lua. É possível que haja unanimidade em que esta é uma palavra poética. E a expressão lua de prata? Com certeza já foi poética um dia, hoje é apenas um lugar-comum. Para Augusto dos Anjos, em As cismas do destino, o luar tem a “cor de um doente de icterícia”, o que dá uma outra dimensão ao fenômeno.

O poético, em verdade, resulta da combinação das palavras e expressões e de como o leitor percebe essa combinação. No Poema negro há a seguinte estrofe: 

A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
– Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade. 

A essência dessa estrofe são as clássicas perguntas, que um dia, mais cedo ou mais tarde, todos nós nos fazemos: quem sou? De onde vim? Para onde vou? Parece mesmo que toda a metafísica resume-se a essas três questões. Nada mais banal, portanto. No entanto, há, nessa estrofe, dois versos que a redimem de qualquer banalidade: 

Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?! 

Vamos esmiuçá-los: há dois substantivos (sombra e cavalo) mais uma locução adjetiva (de eletricidade) e um verbo de ação (correndo). Sombra é uma metonímia que representa o “eu lírico”: ele poderia dizer, prosaicamente, para onde irei?, simplificando o entendimento. O verso seguinte é uma explosão poética: a combinação de palavras tão distantes (cavalo e eletricidade) causam um efeito absolutamente novo, dando a ideia exata da rapidez da passagem do tempo, enunciada no primeiro verso – a passagem dos séculos me assombra.

Por tudo o que se disse, leitor, duvide quando você ler ou ouvir sobre o poético e o não poético, especialmente na poesia de Augusto dos Anjos. É preciso compreender que a poesia se faz também de matéria cotidiana, por isso não pode se dissociar da realidade. Querer uma poesia sem a mácula do dia a dia é querer uma poesia alienada e, portanto, supérflua, inútil.