Amigos do Fingidor

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Uma análise do Eu – 10/13

Zemaria Pinto

4) Linguagem – prenúncios do Modernismo


Há vários aspectos na linguagem de Augusto dos Anjos a serem observados. Não é pretensão deste trabalho esgotá-los, mas nunca é demais lembrar que é na essência da linguagem, em como ela se organiza, em como ela funciona para o leitor, que está a arte de escrever. Vamos procurar mostrar-lhe, leitor, como, apesar de vazada numa forma tradicional, a linguagem usada por Augusto dos Anjos já prenuncia o Modernismo, que, oficialmente, tem suas primeiras manifestações somente em 1917, para explodir na Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, tornando-se o evento artístico (não apenas literário) mais importante e influenciador do século XX, no Brasil.

Paródia e humor – Esta é uma abordagem inédita, leitor. Se você se der ao trabalho de recorrer a outras fontes para melhor compreender a poesia de Augusto dos Anjos, com certeza lerá que ele era um pobre coitado, um sofredor, um incompreendido etc. Já mostramos, na análise do tema central, que a opção de Augusto dos Anjos é por uma estética da dor, para assim melhor denunciar a degradação humana. Na análise dos motivos, mostramos como o autor trabalha em detalhes essa estética. Isso não elimina, contudo, já o dissemos também, a sinceridade do autor. Nossa proposta agora é mostrar que na estética da dor cabem também a paródia, a ironia e até mesmo algum humor, elementos fundamentais da escola modernista.

O poema transcrito abaixo, As pombas, é de Raimundo Corrêa (1859-1911), notório parnasiano. É possível que você já o conheça, pois é um dos poemas mais antologiados do período. 

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra..., enfim dezenas
De pombas vão dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada. 

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo, elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada... 

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais; 

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais... 

É um poema singelo e a reflexão que encerra beira mesmo a pieguice: ao contrário das pombas, que, apesar de livres, voltam sempre para “casa”, os sonhos da adolescência são esquecidos na idade adulta. Num processo paródico, que consiste na imitação irônica, Augusto dos Anjos escreveu O morcego: 

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. 

“Vou mandar levantar outra parede...”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede! 

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?! 

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto! 

A paródia, leitor, pode imitar a forma e/ou o conteúdo, subvertendo-os. Neste caso, nós temos uma imitação clara de conteúdo. Às pombas está contraposto o morcego. Se aquelas, diurnas, são símbolos do bem e da graça, este, noturno, é o símbolo do mal e da desgraça. Se aquelas têm toda a liberdade de ir e vir, este insiste em atormentar o “eu lírico” no espaço limitado de um quarto. À singeleza de pensamento do primeiro poema, opõe-se a grave reflexão do segundo: é uma metáfora da consciência do homem atormentado pelas falhas cotidianas. Se o poema parnasiano versava sobre sonhos adolescentes, o poema de Augusto dos Anjos trata de um sentimento que somente os éticos ainda o tem: o remorso, a culpa.

Deliberadamente antiparnasiano, Augusto dos Anjos leva a paródia ao extremo no poema O martírio do artista. Um dos temas caros do parnasianismo era exatamente escrever sobre o fazer poético, em exercícios metalinguísticos, onde a forma é colocada acima de tudo. Em um poema excepcional em todos os sentidos, Inania Verba, expressão latina que significa “palavras inúteis”, Olavo Bilac (1865-1918) questiona a impossibilidade de expressão por não encontrar as palavras exatas (a forma, leitor) que reflitam aquilo que o poeta sente mas não consegue exprimir: 

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
– Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava... 

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Ideia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava. 

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta? 

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta? 

Agora, observe O martírio do artista, de Augusto dos Anjos: 

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda! 

Tarda-lhe a Ideia! A Inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento! 

Tenta chorar, e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à mingua
Da própria voz, e, na, que ardente o lavra, 

Febre de, em vão, falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra! 

Em oposição à elegância e delicadeza com que Bilac descreve o desespero do poeta por não encontrar as palavras que exprimam seus sentimentos, temos em Augusto dos Anjos uma caricatura, que culmina com o poeta comparado ao paralítico que, em desespero, tenta arrancar da língua, com as próprias mãos, as palavras que não lhe vêm naturalmente. A propósito, leia também o poema A ideia, que é um complemento de O martírio do artista.

Quando falamos de humor, precisamos fazer uma distinção: há a graça, uma disposição de espírito, e há o sarcasmo, que é uma manifestação violenta – e nem sempre engraçada. Para o primeiro caso, há inúmeras ocorrências em Augusto dos Anjos. Por exemplo: “Ah! Um urubu pousou na minha sorte”, extraído do poema Budismo moderno, que virou dito popular para designar um período de azar. Em Psicologia do vencido há um verso, “profundissimamente hipocondríaco”, que, pelo inusitado da combinação das palavras, acaba por tornar-se engraçado: um sujeito hipocondríaco já é um problema, imagine-se então um profundissimamente hipocondríaco... O segundo terceto de O deus-verme é também exemplar: 

Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!  

A preocupação do verme com a alimentação dos filhos humaniza-o, o que não deixa de ser um paradoxo, pois é de cadáveres humanos, na visão de Augusto dos Anjos, que ele se alimenta.  Nesse processo de “humanização” do verme, Augusto dos Anjos chama-o também, em Psicologia do vencido, de “operário das ruínas”. Enfim, o leitor poderá descobrir muitas outras situações que revelam esse olhar humorado do poeta.

Mas há também o sarcasmo, que encontra seu paroxismo em uma quadra de As cismas do destino: o “eu lírico” vocifera contra a ética cristã, que, esgotada, prega um tipo de atitude que não encontra correspondência na prática:  

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!