Jorge Tufic
Em termos de física moderna, “um objeto em movimento parece contrair-se na direção de seu movimento e se encurta à medida que sua velocidade aumenta, até que, ao alcançar a velocidade da luz, desaparece completamente ( “A Dança dos Mestres Wu Li”, Gary Zukov, Ece editora, pag.141). Em tempos de ficção literária, essa teoria extrapola da realidade da física no continuum espaço/tempo, em sentido contrário: aqui, a narrativa se expande no tempo real e, quando atinge as soluções mais imprevistas, já não cabe no espaço imaginário de um simples dia cronológico, mas ala-se com a noite para nunca mais terminar. Na “velocidade” de cada situação ou segmento da estória, a duração joyceana trava as cordas do relógio para conferir o terreno descontínuo da marcha obrigatória. E assim, num só dia, o autor deste livro instaura, na selva amazônica gizada para a construção de uma grande hidrelétrica, a “Odisséia” de uma expedição científica nas matas do Uatumã. À semelhança de “Ulisses”, de James Joyce, seus capítulos obedecem à uma divisão ternária, mais convencional do que propriamente cabalística , enquanto o texto da obra se comporta tranquilamente numa só divisão quaternária, aí sim, querendo talvez sugerir a alternativa de várias escalas em busca de uma quarta musical, onde todos os sons, ruídos e mistérios da biota tragam porventura a resposta certa para uma única pergunta: – “Valerá a pena fazer tudo isso?”
Mas enquanto a resposta não vem, os seis integrantes do grupo estão a caminho: um botânico, chefe da expedição, um zoólogo, um geólogo e um engenheiro florestal. No apoio, José, caboco da região, mateiro e cozinheiro, e Domingos, guia. Domingos, o índio, surpreende com as suas andanças, previsões e descobertas durante todo o percurso. Componente mágico da pesquisa em demanda das terras altas ou do platô, sede e comando virtual do gigantesco projeto, divisor de águas das bacias do Uatumã e Urubu, o guia nativo parece vencer o mutismo e não se cansa de afastar a cortina invisível do som e da sombra, para revelar os perigos da floresta. Implica também com a burrice e o instinto predatório do caboco: “Caboco não tem cara de nada. É mistura” (pag.21). Chega-se a ouvir a bulha do mateiro rompendo, com seu terçado, a galharia fechado e o cipoal teimoso. Atrás dele ou passando à frente embrulhado no jogo das nuvens, ora indulgente com a falta de sutileza do caboco, ora dono da trilha e do mato, Domingos é o pé de onça. Enquanto um pisa, o outro levita. Enquanto um caminha, o outro se desloca. E assim vão, com os homens do instrumento, da ciência e da dúvida reunindo e dando ordens para acampar. De 6 às 9, de 9 às 12, de 12 às 15, de 15 às dezoito horas de um dia qualquer, o décimo quinto de uma expedição parcialmente esmagada pela ameaça do confronto desigual, movido a diesel, com a selva primigênia, algo maior do que todos os papéis da equipe inspira o autor onisciente a pesar os dois lados. Jorra então o saber, ou a sabença que gera o ensaio. Na verdade, ressalvada a técnica e a linguagem próprias do romance, este livro de Getúlio Alho tem desde já assegurado lugar de destaque entre os melhores que falam da Amazônia.
Depois de algumas tentativas, no teatro e na simples recolha do lendário para fazer “estrelismo”, cujos autores acabaram falhando por culpa da pressa, exatamente nessa pausa estratégica em nada favorável para editar livros, Getúlio Alho solta o produto de seu trabalho, conquista o prêmio “Cidade de Belo Horizonte”, e resgata a boa prática do trançado indígena em seu plano de romance. Ele já tinha, inclusive, a experiência de “Anhuera”, o inventor do futuro. Aqui também – neste “O Décimo Quinto Dia” – estão reunidas as marcas vivas de suas inquietações pela posse de elementos capazes de fazer a textura do enredo, sem cair no relatório. Daí a interferência do nheengatu e do tucano, alternando as falhas da História com a vigília cósmica daqueles filhos das águas pretas.
Nos dois incidentes mais graves da expedição, onde quatro índios e um branco são mortos, verifica-se claramente que o que houve entre eles foi falta de comunicação, essa mesma que falta entre o homem e a natureza. Nem por isso, contudo, Balbina deixaria de ser construída: “Um lago de um milhão de metros cúbicos numa área de mais de quinhentos mil hectares...” Expedições anteriores dizimaram as tribos de autóctones e despacharam os garimpeiros para uma outra área. As folhas das árvores ecoam nas folhas do livro, e esse trânsito de imagens fertiliza o registro das menores ocorrências, fenômenos, coisa, ação. Súbitos mergulhos no passado de cada personagem ligada à região pelas raízes do umbigo, descortinam, por outro lado, os tremendos conflitos que arrasaram os parintintins. Numa outra viagem de memória, Domingos revive a maloca de seus antepassados, e a breve “cerimônia” de seu casamento: – “Taqui tua mulher. Cuida dela pra que ela te dê muitos filhos!” – A moça pirá-tapuia ficou ao seu lado, humilde, quieta, submissa. Ele se levantou, deixando-a só, e foi pescar. Voltou com um peixe: – “Toma. Prepara pra gente comer.” – Ela recebeu o peixe, limpou-o e preparou-o, servindo-lhe com beiju e pimenta; só depois que ele acabou de comer é que se serviu e comeu. Estavam casados.”
A constante da obra, no entanto, é o empenho de Batista, o chefe da expedição, em tornar viável o projeto de Balbina. Racionando à maneira dos primeiros colonos portugueses, parecia-lhe anormal e descoberto de lógica deixar “milhões e milhões de quilômetros quadrados de matas virgens à disposição de meia dúzia de índios que logo morreriam de fome, desprovidos de ferramentas ou capacidade para tirar da terra o mínimo para seu sustento diário”. A lógica formal, o Santo Ofício e o “martelo das feiticeiras”, exorcizavam agora, em nome da Represa, a todos quantos, filhos da gleba primitiva ou netos do trovão, se oporiam de algum modo ao traçado dos altos gabinetes de Brasília. O destino da região já estava decidido. Desse no que desse!
Linguagem simples, informação copiosa, realismo-naturalismo sem retórica, técnica segura, relato vivo, crítico e atual para avaliar-se o tamanho da violência para tão poucos resultados práticos – este é o livro do escritor-arquiteto Getúlio Alho, onde, ao término de sua leitura, esta pergunta desaba sobre nós como se fosse a própria represa de Balbina: – Valeria a pena fazer isso?
Hoje sabemos que não. Que não valeria.