Zemaria Pinto
Morressem as impressões do mundo externo e ficassem apenas as expressões desse mundo? Exprimirão estes versos de Augusto dos Anjos o que ele procurava com sua estética da dor? Ora, leitor, o Expressionismo, uma das muitas escolas que surgiram na Europa no início do século, rezam os manuais, busca expressar a percepção que o artista tem da realidade objetiva pelas reações e associações que ela lhe desperta. É “a expressão das vivências íntimas, da reação subjetiva aos estímulos exteriores, buscando ‘a verdade atrás das coisas’”, no entender de Celso Luft; ou ainda, como nos ensina Gilberto Mendonça Teles, é a arte criada a partir da “expressão da vida interior, das imagens que vêm do fundo do ser e se manifestam pateticamente.”
O que temos na poesia de Augusto dos Anjos, conforme podemos depreender dos poemas analisados: o “eu lírico” reflete a realidade observada, mas não de maneira “fotográfica”; pelo contrário, a realidade sempre nos chega deformada, absurda, muitas vezes grotesca ou patética. Os poemas da segunda fase, sem exceção, trilham esse caminho expressionista, sem qualquer vacilo. E como são a grande maioria do livro, podemos afirmar que, apesar de alguns poemas ainda ecoarem estilos do século XIX, é predominante nos poemas do Eu, o Expressionismo.
Circunscrito, no início do século, praticamente só à Alemanha, é pouco provável que Augusto dos Anjos tenha tomado contato com o Expressionismo. Isto, entretanto, não nega nossa hipótese. Pelo contrário, reforça a importância do trabalho de Augusto dos Anjos, desenvolvido a partir das influências citadas, mas em paralelo ao que se fazia na Europa, criando, de maneira original, seus próprios processos expressionistas. No Brasil, o Expressionismo foi absorvido pelo furacão modernista, que deglutia as formas importadas, procurando abrasileirá-las. Na literatura (já que o movimento, a partir da pintura, espalhou-se por todas as artes), o maior representante da escola é o escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), autor, entre outras obras, de O Processo, A Metamorfose e O Castelo.
É importante ainda observar, na análise de As cismas do destino, como a intuição de Augusto dos Anjos é privilegiada: além de criar (repetimos: a partir das influências comuns) uma nova forma de escrever poesia, ele antecipa alguns procedimentos típicos da poesia modernista. Observe-se novamente as estrofes onde o Destino mostra ao poeta que ele jamais entenderá o mundo. O autor usou da enumeração caótica, numa torrente de imagens que só fazem sentido naquele contexto, mas que, isoladamente, têm plasticidade e concretude para existirem como tal. Um processo absolutamente modernista.
A terceira estrofe, já citada, antecipa o Surrealismo, ao fazer a inusitada comparação:
Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A estrofe 14, por outro lado, antecipa o próprio Kafka, de quem ele jamais ouvira falar, mesmo porque o romance O Processo, que narra as desventuras de um cidadão nos labirintos da justiça, só seria publicado em 1925:
Ah! Com toda certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!
Mais adiante, na estrofe 34, ele antecipa o “Big Brother”, que o inglês George Orwell (1903-1950) criou no romance 1984, publicado em 1949, descrevendo uma sociedade totalitária, onde as mínimas ações de todos são ostensivamente vigiadas:
Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!
A sinonímia poeta/profeta está presente no imaginário ocidental desde Sócrates, via Platão, para quem “é quando estão possessos e inspirados por um deus que eles recitam todos esses belos poemas”. As “antenas da raça”, como os chamava Ezra Pound, colocam-se à frente de seu tempo como profetas porque usam a imaginação com mais liberdade que os demais artistas. Augusto dos Anjos era um desses poetas/profetas a quem só o tempo fará a justiça devida.