Amigos do Fingidor

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Antonin Artaud e a estética da vertigem 1/2



Zemaria Pinto

Por ser fora do comum, a obra de Antonin Artaud precisa de instrumentos incomuns para ser analisada e melhor entendida. Ao propor a “estética da vertigem”, busco compreender não apenas a obra de um autor em particular, mas todo o universo romântico, desde seus precursores até nossos dias.

Artaud, em A paixão de Joana D'Arc, de Dreyer (1929).
Aqui não podemos admitir o reducionismo didático de que o Romantismo acaba quando começa o Realismo ou o Simbolismo. Na verdade, a revolução romântica ainda está em curso, embora não esteja na moda. Os últimos românticos estiveram em voga lá pelos anos 60, com os beats e os hippies, on the road. O romantismo é um processo permanente e contínuo, que põe em evidência a postura do artista e sua relação com a sociedade. O artista pós-moderninho rejeita os rótulos porque não tem identidade, ou melhor, não se identifica com nenhum dos rótulos disponíveis. A modernidade acabou com o romantismo enquanto escola, mas não enquanto concepção de vida. Quem mais moderno e romântico que Glauber Rocha, Torquato Neto ou Cazuza? Ou Jack Kerouac, Ana Cristina César e Allen Ginsberg?

Mas, afinal, que romantismo é esse? De certo que não é o romantismo de açucareiro, das mocinhas casadoiras ou das “poetisas” temporãs. Tampouco, o exibicionismo dos idiotas que acreditam que o máximo da vida é plantar uma árvore, fazer um filho e escrever um livro. Não, falo do romantismo enquanto vertigem. A vertigem é a sensação de ter o mundo girando a nossa volta, ou, inversamente, de que giramos descontroladamente no centro do mundo. A vertigem é a recusa às regras, aos modelos, às normas − é o grito pela liberdade de criação. A vertigem não comporta a arte vestida de linho branco sob a brisa de uma tarde azul de domingo. Não, a vertigem é o caos, a anarquia, a aventura, o desequilíbrio, a lama, a podridão, a escuridão. A vertigem é o não.

Mago, profeta, predestinado, o gênio romântico sob a vertigem tem êxtases místicos, que lhe descortinam o supra-real e o infinito.  A beleza torna-se relativa e seus ingredientes passam a ser antagônicos. As inquietações populares, ele as busca enquanto elas ainda adormecem no seio do povo. O romântico é um revolucionário. Sua pátria é o mundo. E ele parte em busca de outros mundos, procurando a essência, o primitivo, o primordial.

O tempo como dimensão psicológica, uma conquista romântica, mantém vivo, através dos anos, o impulso rebelde da primeira metade do século passado. A modernidade não rompe com os padrões clássicos porque os românticos já o fizeram. A modernidade apenas radicaliza a proposta romântica, colocando a linguagem como o vértice supremo da paixão. E aqui, quanto mais profundo e radical o mergulho, mais nos encontramos no centro da vertigem − simbolista, futurista, cubista, expressionista, dadaísta, surrealista, beat: vertigens.

Artaud faz parte de uma tradição que remonta a Gérard de Nerval, poeta francês hiper-romântico, precursor do Simbolismo, que mereceu de Artaud um ensaio apaixonado, e que, como ele, tinha problemas mentais, tendo sido internado diversas vezes. Artaud, que sofrera de meningite quando criança e tivera convulsões na adolescência, foi internado pela primeira vez aos 19 anos. Aos 24 tornou-se dependente de láudano, um derivado do ópio, que usava para combater as constantes dores de cabeça.
Artaud, por ele mesmo: um olhar cruel.

As grandes referências de Artaud compõem uma lista de ícones do Romantismo, embora nem sempre sejam assim reconhecidos, dadas as limitações da ortodoxia acadêmica: Poe, Baudelaire, Lautréamont, Hölderlin, Nietzsche, Blake. Entre o êxtase das drogas e as experiências sensoriais extremadas que procuravam a liberação do “eu”, o Surrealismo “institucionalizou” a busca da transcendência da percepção a qualquer custo. Participante de primeira hora, Artaud rachou com os surrealistas quando estes resolveram fazer parte do mundo real. A participação política organizada, a adesão ao Partido Comunista, apenas confirmavam a decadência estética de Breton e seus seguidores: a criação de um código teórico, uma poética, que poria por terra quaisquer laivos de autêntica liberdade criadora.



(Conclui na próxima sexta-feira.)
Publicado nos anos 90, no Amazonas em tempo.