Jorge Tufic
O exercício de qualquer modo poético ensina a ver e a sentir o nosso cotidiano não apenas como um território de batalhas pela sobrevivência material, mas, sobretudo, como veículo e atmosfera de emoções constantemente renovadas, surpresas e descobertas.
Sendo afetiva e universal, a poesia manifesta-se independentemente da vontade de cada um. O ser é parte dela. Esmagada ou esquecida em razão de interesses que parece contrariar, ainda assim, sob vários outros nomes e formas, ela penetra em tudo e em todos por magia de fenômenos pré-existentes ao raciocínio lógico.
A mente coletiva, presa aos estames da produção e do consumo, deixa passar em branco sequências, movimentos, figuras, paisagens e fatos que, de repente, dado o hábito que adquirimos de correr e “esfriar” os sentidos mais próximos do humano, são creditados ao mundo da fantasia. A exploração do homem pelo homem, a miséria ambulante e ambulatória, a infância abandonada, as casas em ruínas, o êxodo rural que amplia o latifúndio e abarrota os presídios, as colinas e os campos distantes, o abate indiscriminado de animais, a verde transparência dos bosques, a lenta agonia das árvores, o drama social dos que vivem expostos ao perigo e à morte, já se constituem em partes inseparáveis desse vasto painel que se divide, principalmente, entre a casa e o trabalho. Diante dele, porém, raro saímos de nossa concha para um voo mais extenso, capaz de avaliar as sutilezas que dançam entre o sólido e o volátil, entre o simples e o complexo.
Viver, dizia o campeiro ao praciano, todo mundo vive. Conviver, é que é. Extrapolando, portanto, da convivência entre pessoas, a convivência plena só pode ser alcançada quando vamos ao encontro dos “elos” e “qualisignos” do nosso cotidiano. É desse encontro, sem dúvida, que brota o sentimento poético. Nos passos da multidão enxergamos agora a caminhada do homem em seus diversos estágios de evolução e desenvolvimento. Nos olhares aflitos da criança e do cão que tentam atravessar uma rua, começamos também a refletir sobre os fracassos do nosso progresso. É que o homem, em última hipótese, já era dono de seu próprio caminho terrestre, antes do automóvel. O cotidiano é poético na medida exata de sua humanidade.
A mudança de época altera a pressão da linguagem, mas em nada modifica o “sentido primordial” e o “sentido profundo” do insight. A Forma Simples frustra o intento mais ousado das classificações literárias, e o “gesto verbal” recria a legenda. Segundo André Jolles, “para falar em termos de escolástica, pode-se dizer que a legenda contém, de modo virtual, o que existe na Vida de modo atual”. Considera Jolles, em seu livro famoso de 1930, as “formas simples” enraizadas na linguagem como “gestos verbais” elementares e que se originam de “disposições mentais” básicas do Homem em face do mundo e da vida. Dessas formas simples (que incluem a legenda, a saga, o mito, a adivinha, o ditado, o caso, o memorável, o conto e o chiste), analisa o autor a natureza, as características e as formas históricas de atualização, mostrando que delas derivam as formas literárias mais complexas: assim, por exemplo, o romance policial é a atualização da adivinha (“Formas Simples”, Ed. Cultrix, SP, 1976). O que houve afinal após tudo isso? Terá a industrialização contribuído para estancar as fontes genéticas do mito, a força da legenda ou as múltiplas vertentes do conto e da gesta? Ou novas “disposições mentais” vieram à tona com a trágica libertação do átomo para fins genocidas?
De qualquer modo, todo o “revestimento” da civilização e da cultura inclina-se para o estético. A perspectiva de tais conjuntos sugere o poético. Para exemplificar, não se pinta uma casa somente com o intuito de proteger o embuço de suas paredes. Nem se plantam jardins, com repuxos e estátuas, somente para exibir exemplares da flora e entidades míticas, ou religiosas. A urbanização, coroamento que instala, definitivamente, o homem em seu novo hábitat, sempre em luta desigual com as mazelas do progresso, empenha-se também no embelezamento e no repouso de linhas estáveis, tendo em vista o bem-estar público. Em teoria, contudo, o longo trajeto de soerguimento do homem tem um compromisso ainda longe, talvez, de ser realizado: o de levá-lo, com êxito, a um segundo paraíso, humanamente impossível enquanto prevalecerem as diferenças de classes.
Translado, rotina, jogo e clarividência, toda poesia é social. Incursor e praticante de seu cotidiano, o poeta, este cidadão libérrimo, se toca e se arrasa em traumas silentes, envolto na fugacidade de uma existência criadora, mas vítima, ao mesmo tempo, das grandes e pequenas tragédias que montam a perspectiva e o absurdo do mundo contemporâneo. A sensibilidade moral e a condição humana, norteiam seus passos. Lírico ou épico, seu discurso traduz a lasca viva do torvelinho, da mudança e da transformação. Sua linguagem opera em todos os níveis, pois a linguagem poética está a uma linha quase invisível daquilo que se denota. É a linha imaginária que une os contrários diante da reflexão de um minuto, apenas. Este leve tecido humaniza e dá um sentido às coisas. Este sentido é poesia.
Publica o Suplemento Literário de Minas Gerais, em seu nº 1103, que Mário Quintana evita os entrevistadores, “chatos perguntativos”, na sua opinião, para driblar perguntas e assuntos poéticos. Ele prefere conversar amenidades, ou coisas do cotidiano. Quintana, tido como o mais puro dos poetas, tira de suas passadas habituais pela cidade de Porto Alegre, a cor, o som, a palavra e o neologismo bem à maneira de seus poemas instantâneos, até de suas vírgulas. Ao contrário de certos colegas de ofício, que de tanto se confinarem em suas bibliotecas mais parecem livros do que gente, esse poeta gaúcho, estando agora numa fase de releitura do quanto lera e vivera em toda sua vida, é, portanto, na vida e no mundo que ele busca alimento para escrever. Seu coloquialismo retoca o Inferno de Dante... (1988)
Filósofos, cientistas e tecnocratas, ao cabo e ao fim de suas lucubrações, deparam com a verdade na poesia. Todas as aparências e projeções de fenômenos naturais ou mecânicos, apesar de infletirem qualidades variadas, dependendo do ângulo, da visão e do sentimento que observa, nunca se repetem. A luz do sol, o reflexo das águas e tantas outras “descargas” e toques subliminares, povoam nossos dias. A noite apanha estes sonhos, e navega com eles. Como seja a posição de cada um, nós tomamos desses objetos a imagem real ou a imagem ideal. Esse gesto comum, aliado a uma “estória” ou mesmo aos temas de nossa intimidade doméstica, se exprime por várias outras imagens e metáforas que às vezes se combinam de modo inconsciente. Essa imagem ideal, que já existia, por exemplo, no projeto e no sonho do artista antes da imagem real, é um dos componentes do nosso cotidiano. Associada ao convívio afetivo, ela vai enriquecendo e aprofundando as demais vivências que tivemos nas idas e vindas em que tantos outros fatores – como o vento e as chuvas – tiveram sua parte.
O cotidiano, abrigo de signos & objetos, processo de todos os processos em qualquer baliza de entendimento, construção e objetivo, ele tem, na poesia, a única linguagem que torna possível a diversidade, impossível a comunicação e permanente a expectativa. O cotidiano no campo, nas montanhas, nas grutas, nas torres, nos ares, nos rios, nas florestas, nos oceanos, nos pântanos, como este Mato Grosso de Manoel de Barros, o cotidiano nas fábricas, nos velhos e nas crianças, o cotidiano nos mortos. É preciso vê-lo, senti-lo e vivê-lo neste outro cotidiano – resumo de todos os demais cotidianos – que está na arte do poeta. O cotidiano das normas, das regras fixas e das terminologias que, logo logo, ao contato das realidades em fluxo, se ampliam ou desaparecem na conquista de novas formas e novas palavras. Ou de formas, volumes e cores apenas, sem qualquer palavra.
“Nos tempos dos aztecas, segundo crenças religiosas, ao final de cada ciclo de cincoenta anos, a vida antiga deveria ser destruída, pelo menos simbolicamente, iniciando-se um novo ciclo. Isto implicava em que todos os fogos fossem apagados, todos os utensílios domésticos destruídos ou renovados” (L. S. Cressman, “Homem, Cultura e Sociedade”, Ed. Fundo de Cultura, 1956). Tenhamos aí, portanto, que os templos seriam as obras de arte construídas por todos os membros da sociedade. Aos utensílios domésticos, como até hoje se verifica entre os remanescentes íncolas do Alto Rio Negro (AM), produtos de arte e artesanato, também se incorporam formas e representações de fundo mítico. Nas sociedades complexas do mundo atual, encontramos também uma atmosfera de criatividade e saturação de mitos e símbolos, que, por sua vez, se renovam. Mais do que nunca, o cotidiano global é a Fênix da Poesia. Ele destrói e recompõe com tamanha rapidez, que até dele nos esquecemos.
O propósito desta comunicação é demonstrar aos interessados na Arte Poética como fora esta organizada, desde as suas origens, chegando a formar um corpus de regras e normas bem considerável. A exemplo do triolé, fácil de improvisar. No todo, porém, a Arte Poética, hoje, está livre de amarras. Livre até da Gramática que, segundo pensam os mestres do ideograma chinês, só foi inventada para estragar a poesia. Mas achamos, por fim, que se deve e se pode tirar algum proveito daquilo que, por ser indispensável em qualquer iniciação do gênero, ainda vale para todos os tempos.
Para reduzir incursões através de nossa própria experiência no trato com a poesia, tomamos por empréstimo, na parte eminentemente técnica deste trabalho, um pouco da metodologia e dos textos da professora Nelly Novaes Coelho, de Geir Campos, em seu “Pequeno Dicionário de Arte Poética”, e, em, menor escala, do “Vocabulário de Poesia”, de Raul Xavier. Numa visão panorâmica, como pesquisa, montagem e contribuição pessoal, evitamos, nele, a ênfase preceptiva de modelos e sugestões para análise de textos, visando antes motivá-los como resposta ao que foi apreendido e aprendido, no curso das “aulas”.
Afinal de contas, tudo começou quando fomos convidado a ministrar um Curso de Arte Poética a professores do 2º Grau, no Instituto de Educação do Amazonas. Nem é preciso dizer que os mestres-ouvintes, instigando e debatendo até o osso, nos deram, após, a idéia deste livro.
Obs: estaremos, a partir de hoje, e sempre às segundas-feiras, postando, integralmente, o livro Curso de Arte Poética, do mestre Jorge Tufic. Publicado há 10 anos, em pequena tiragem, o livro é hoje uma raridade - daí Tufic haver decidido compartilhar com nossos leitores esses relâmpagos do conhecimento poético.