A poesia através dos tempos
I - Poesia
Inicialmente,
cabe perguntar: como fazer poesia se
ela, a poesia, já existe independentemente da palavra e do poema? Colocada
nestes termos, a poesia se manifesta, no homem, como necessidade de expressão e
comunicação de estados psicológicos, emoções, sentimentos, etc. As sociedades ágrafas,
impregnadas de sentido místico e sobrenatural, utilizavam recursos fonéticos,
gestos, danças, movimentos, rituais, inclusive a sonoridade por meio de
instrumentos de sopro e percussão, para transmitir e “guardar” o seu mundo
riquíssimo em tradição, poesia, ciência e artesanato, dos quais se utilizavam,
também, para as utilidades domésticas.
A
poesia, nas sociedades tribais ou primitivas, encontra sua mais alta forma de
expressão através do lendário e da mitologia que informa sobre o modo como
surgiram, incluindo-se, aí, a terra, os bichos, as águas, os homens, seus
deuses e seus heróis. Aliada ao sonho e á natureza de que se alimentam as
visões e a fantasia, ela traduz a sabença que intui dos mistérios, dos valores
e das grandezas físicas do Universo. A linguagem é indireta ou metafórica, mas
sua qualidade poética reside, sobretudo, na adequação do linguajar da criança
ao senso de medida que empresta aos fatos narrados uma situação mágica da
própria realidade. Melhor explicando, as noções convencionais de espaço e de
tempo, peso e volume, se anulam face ao imaginário acumulado e transmitido
pelos narradores de estórias. Os índios, assim, representam o pleno exercício
físico e vocal da poesia, antes da cultura e da palavra escrita.
Os
povos indígenas contam seu mundo. Uma parte dessa “literatura” dos primórdios
da Amazônia acha-se recolhida nas obras de Antônio Brandão de Amorim, Barbosa
Rodrigues, Elmano Stradeli, Nunes Pereira, Theodor Koch-Grünberg e outros. A
língua geral do Amazonas ou Nheengatu (= nheen (língua), catu (bonito)), falar
bonito, orquestrada pelos missionários jesuítas como primeiro passo da
cataquese, servira ao mesmo tempo para contornar a fechada barreira dos falares
e dialetos existentes na região, facilitando, posteriormente, a coleta daquele
material etnográfico: lendas, costumes, puçangas, mistérios e testemunhos.
Saberiam, por acaso, os cientistas que tesouro poético traziam para a cultura
do branco? Sobre este fato inusitado escreve Raul Bopp: “Os nheengatus,
colhidos genuinamente nas malocas do Alto Urariquera e na região do Rio Negro,
eram de uma enternecedora simplicidade. Por exemplo: “Há muito, já, no
princípio do mundo, contam, desceu do céu uma moça, de lindeza de rosto” etc.
Ou então: “Nos tempos de antigamente...”
O tuxaua acreditava na sua origem cósmica quando dizia: “Aquela estrela que me
gotejou...” Nos diálogos afetivos, usavam o diminutivo dos verbos:
“estarzinho”, “esperazinho”, “adoçazinho” etc. Para dar ênfase a certos
episódios, recorriam ao processo de repetição do vocábulo, como “pula-pulavam”,
“vira-virando” etc. “(Raul Bopp, “Putirum”, ed. Leitura S.A, Rio, 1968).
Língua
postiça, importada, artificial e imposta, legou-nos contudo, o nheengatu, a
riqueza e a plasticidade de um vocabulário singular, dentre o qual
substantivos, adjetivos e verbos que detém a fragrância, a tônica e o toque
mágico na fixação da paisagem e dos fenômenos que movem, e se movem, em planos,
emaranhados e acidentes geográficos de
cada pedaço habitado pelas diferentes nações, ou tribos autóctones.
Temos, assim, PANÃPANÃ (borboleta), CATUÍ (bonzinho), YÚRI (água corrente),
CUARI (buraquinho), YPIXUNA (água preta), PURANGA (bonito), ANDIRÁ (morcego)
etc. Dos verbos que transmitem carinho, amizade, conforto e segurança:
ESTARZINHO, DORMEZINHO, fazer DOIZINHO, ADOÇAZINHO etc.; inclusive muitos
outros, somente traduzíveis para qualquer idioma mediante recursos estilísticos
habilidosos.
Com
certa estilização no arranjo das linhas, que passam da forma prosaica para
versos e poemas, transcrevemos, a seguir, as lendas Macuxi, do Rio Negro, e a
Uanana, do Alto Rio Negro. A “Elegia Tucano” é de nossa autoria, inspirada
recentemente na última curva, talvez, de transição e decadência desse povo
heróico.
LENDA
MACUXI
(Rio
Branco)
No princípio era o canto.
A lua cantava pelo céu, todos ouviam
seu canto bonito.
Por cima dos galhos macacos cantavam.
Todos os animais da terra
– répteis, aves e peixes –
também cantavam.
Antes a noite era grande, vazia.
Da carne das frutas comidas pelo homem,
nasceram os animais.
Das sementes brotaram cabas, formigas,
lacraus e aranhas.
Lançadas ao rio, estalaram seus peixes.
A árvore que falava, disse ao homem:
– Come a carne da fruta,
depois enterra a semente.
Mas ele esqueceu-se do que a árvore lhe disse,
passou a estragar tudo,
espantou-se do que fez.
Embaixo da árvore os bichos e animais
aumentavam de número e tamanho.
As sementes deixadas nos galhos
cantavam saracura, guariba e outros.
No rio jacaré, sucuriju, piraíba,
outras espécies cantavam também.
Ele ficou espantado: nenhuma árvore
lhe respondia mais onde estava
nem de onde vinha esse barulho.
O homem quedou-se triste,
e já não tinha (já) como de onde fugir.
ELEGIA
TUKÂNO
Ai, Kaxpi,
meu sapo cozido,
meu pote sonâmbulo,
minha canoa tonta,
meu rio afogado,
dai-me o sono, Kaxpi!
Uma outra vez, dai-me, Kaxpi,
a visão da maloca,
a palha seca umari,
meu banquinho feliz,
meu trovão de brinquedo.
Contam, contam,
nós vimos de longe,
Cobra Grande nos dera caminho,
a terra das margens
uniu-se aos tukâno.
É por isso Kaxpi,
que a porta da maloca
começa no rio.
Teu vinho de Lua,
teu visgo doce de flauta,
tua boca de arco-íris
fazem ver estes lugares, Kaxpi,
ouvir o milho pitá,
a mukura canhen,
a onça, a forquilha,
a cigarreira do avô.
Tudo pequenininho, Kaxpi,
mas a gente entendia...
O bosque do sol,
a velha do Curupira,
o forno de farinha,
as redes de dormir,
o ralo de macaxeira,
o jirau, as estacas,
o espinhaço da Casa...
ainda estamos em viagem, Kaxpi,
na barriga da Cobra.
PARAMAN
E DUHI
Nessa cachoeira da Onça,
sobre o lajedo que é feito
com pedras de antigamente,
as duas moças da tribo
pelo moço já esperavam.
Seu rosto às vezes boiava
no espelho azul de algum sonho.
O moço também as via
quando por elas sonhado.
Dali mesmo ele surgiu.
Três dias foram de festa.
Depois, então, combinaram,
cada moça por sua vez,
fugir com seu namorado.
Só que as irmãs eram duas
para uma sombra de rio.
Hoje, a cachoeira é deserta,
o tempo dói quando passa.
Três asas de borboleta
rodopiam nessa margem,
fazem puçanga de lua.
Três remos buscam seu porto
sem que saiam de onde estão.
Três corpos soçobram n’água
entre alegria e tormento.
Três flautas de osso e taboca
soluçam guelras de vento.
AS
VÁRIAS MORTES DE MAKUNAÍMA
Makunaíma sacode o corpo do mato.
O chão se levanta, e caminha.
Fazer é o seu verbo de
frutas alegres,
e por onde ele anda, um ramo de susto
cai desprotegido.
O solo é um gorjeio.
Aqui, uma cobra balança seu cacho de veneno;
ali, Makunaíma já tomou sua pele
e veste, com ela, os macacos da noite.
Makunaíma é o princípio do invento.
Para ser anzol ele começa de peixe:
sabe esperar com boca de piranha
o lance do pescador.
Para ver-se homem fazendo o que fazem
com a racha das mulheres,
ele fica menino pidão; mas foge pro mato
com a embira do irmão.
O verde é um silêncio de festa.
Makunaíma despeja seu gozo de febre,
e, lá no alto, surge a constelação
do Mutum. Ele fabrica o céu
com os pés de terra.
Suas mortes são várias.
Porque mesmo no bucho de uma fera,
ou dividido entre braços, pernas, dedos,
tronco, ele comanda o suor do resgate,
a surpresa e o vazio
daqueles que o trazem de volta.
Não tem sacanagem de bruxo
que lhe passe à distância.
Makunaíma tece a hipnose dos grilos.
Com essa teia de sons ele entrama
o tempo no espaço:
arruma as coisas de novo,
se deita, afinal, em seu leito de palha.
E enquanto dorme, fricciona os artelhos
e provoca um incêndio,
somente, só, para rir dos mosquitos.
(JT, baseado in “Vom Roraima zum Orinoco”, de Theodor Koch
Grünberg, 1917)